Uma coisa muito bem feita... e outra muito mal engendrada

O foco tem de ser na vacina, nunca na testagem. Todos necessitamos de ter tido uma injecção nos últimos quatro a cinco meses para podermos circular livre e responsavelmente.

As autoridades portuguesas encaram a Ómicron com duas medidas fundamentais, mas conflituantes entre si.

Em Novembro, quando irrompeu o surto de uma nova variante da covid na Africa do Sul, o mundo assustou-se e as fronteiras fecharam-se. Rapidamente se verificou que a Ómicron tinha uma capacidade de expansão muito maior que as variantes anteriores. A disseminação mundial foi rápida e inexorável. O potencial de contágio seria bem superior à da variante Delta, talvez três a cinco vezes superior, de maneira que nenhuma medida foi realmente eficaz para conter esse tsunami. Talvez apenas se tivesse conseguido atrasar um pouco a sua disseminação através da testagem massiva e com rápidos isolamentos selectivos.

Aqui começou o erro das autoridades, focarem-se na identificação dos casos assintomáticos. Já veremos porquê.

A evidência científica e clínica apontava para que a severidade da infeção Ómicron fosse bem menor que a da Delta. O conhecimento actual é agora mais ou menos consensual: a nova variante Ómicron é muitíssimo mais contagiosa, mas menos severa. Era preciso compreender a razão desse facto e retirar as devidas consequências. Isso orientaria a acção das autoridades para uma lógica coerente de intervenção social e de combate eficaz à epidemia.

Entretanto, já se percebeu que não estávamos perante nenhuma “endemia”, como alguns cientistas afirmavam com alguns políticos importantes a darem, erradamente, continuidade a essa ideia absurda... O conceito de “endemia” nada tem a ver com gravidade, mas sim com a persistência da infeção numa população, com uma dinâmica mais ou menos previsível, compreensível, estável. Nada disso acontece hoje em dia.

Um aspecto importante tem sobressaído da apreciação do curso recente da pandemia, em países como Israel, Inglaterra, França, Estados Unidos e outros. Reparemos: em todos eles a taxa de vacinação é bastante inferior à de Portugal. E por isso mesmo estamos a assistir a um facto muito curioso. Tal como em Portugal, o número de infecções covid atinge números recorde, muito mais elevados do que anteriormente, mas, ao contrário de Portugal, o número de doentes graves internados é bastante superior nesses países.

Porque será isso? A interpretação que se segue é a mais plausível:

1. A variante Ómicron é mais contagiosa e de forma pouco dependente do estado vacinal do indivíduo atingido (ou de ter tido infecção covid prévia) ou seja, estar vacinado ou ter tido covid não impede a doença (ou pelo menos, havendo alguma protecção contra o contagio, ela é pequena). Por isso Portugal bate recordes no número de casos. Tal como outros países, apesar de diferentes taxas de vacinação.

2: A variante Ómicron é “algo” menos grave do que a Delta. Aqui é preciso muito cuidado com as interpretações dos números, porque verificam-se factos curiosos e importantes. Um deles é que o número de crianças internadas com covid nos Estados Unidos (com casos relativamente severos) nunca foi tão grande... e isso é muito preocupante! E, já agora, é mais um facto que suporta a decisão de vacinar as crianças e fragiliza os argumentos negacionistas. Os números de internados na Europa também subiram imenso. Os casos graves predominam nos doentes não vacinados (que sabemos são em muito maior número noutros países do que em Portugal) e isso é muitíssimo importante também como justificação para vacinar mais.

Sem sermos exaustivos, perante a observação da realidade é portanto legítimo tirar uma conclusão relevante e decisiva: a Ómicron pode ser menos grave que a Delta... mas essa baixa de severidade está fortemente relacionada com o estado vacinal das pessoas. E isso tem toda a importância!

A evidência suporta solidamente a ideia de que é a vacina que protege o indivíduo de uma doença mais grave. Agora sim, poderemos considerar que a Ómicron é como “uma gripezinha”, mas apenas se estivermos protegidos da sua agressividade pela toma da vacina. Curiosamente, aquilo que os negacionistas irresponsáveis reclamavam nos últimos dois anos está finalmente a verificar-se: a covid poderá ser agora e finalmente uma doença pouco grave e menos preocupante (nas sociedades desenvolvidas). A diferença é que isso (e nunca é demais repetir) é por causa da vacina.

Somando tudo o que salta à vista, impunha-se uma acção lógica das autoridades. Quais as medidas a tomar?

Primeiro, tentar vacinar o maior número possível de pessoas, pelo menos o maior número possível de adultos e adolescentes, e muito depressa, porque a velocidade de propagação da Ómicron é extraordinária. Esse é um acto decisivo para diminuir mais a gravidade da covid, tanto da variante Delta como da Ómicron.

Aqui, infelizmente, não podemos deixar de criticar o “desinvestimento” na vacinação, aquando da saída do vice-almirante da task force. As autoridades não compreenderam (mais uma vez) a importância de manter a “pressão alta” sobre a sociedade e sobre o vírus, concretizada na imperiosa necessidade de manter as altas taxas de vacinação na ordem do dia.

Mas devemos também elogiar uma medida extremamente simples e excepcionalmente eficaz: impedir a frequência dos espaços fechados ou de ajuntamentos a quem não estiver plenamente vacinado.

Este foi o procedimento mais bem conseguido e eficaz que o Governo determinou, talvez mesmo desde o início da pandemia. Parabéns.

Mas (por azar e para confirmar a falta de capacidade de compreensão do fenómeno pandémico e da liderança em crise) uma outra medida quase simultânea veio boicotar esta, de forma absolutamente inesperada: a possibilidade de, realizando testes rápidos, entrar em locais fechados ou muito frequentados.

Esta medida é um completo desastre.

1. Os testes rápidos têm um grau de fiabilidade baixo. Nomeadamente, existem muitos falsos negativos e isso diminui muito a sua utilidade. E a dinâmica impressionante da Ómicron acentua ainda mais esse fenómeno. A sua enorme contagiosidade origina uma propagação rápida e imprevisível.

2. Na escala populacional, essa forte capacidade de contagiar da variante Ómicron não é significativamente afectada pelo maior ou menor uso de testes rápidos, tal como a sua propagação não foi bloqueada pelo fecho das fronteiras em Novembro.

3. Permitir usar o teste para entrar em espaços fechados ou para conviver em aglomerados de pessoas diminuiu o foco em algo muitíssimo mais importante: a vacinação e o seu reforço. Se podes entrar com teste negativo, não precisas de vacina… e podes ter um teste falso negativo. O contágio continua, eventualmente atingido não vacinados ou os vulneráveis.

O caminho correto seria aumentar as restrições de circulação aos não vacinados (independentemente de testagens pouco fiáveis) e forçar ainda mais a vacinação e o reforço vacinal. Apenas isso, sem dúvida nenhuma.

Os testes devem ser reservados (eventualmente) para pessoas sintomáticas ou para contactos imperiosos e de altíssimo risco potencial de complicações. E nunca serem usados corriqueira e levianamente, muito menos para permitir o acesso a lugares fechados ou a ajuntamentos, onde (isto é fundamental) os não vacinados nunca deveriam permanecer.

Entretanto, as pessoas com a vacinação actualizada só se devem isolar se tiverem sintomas de covid e (cumulativamente) teste positivo. Todos os outros vacinados não entram em quarentena, embora se defendam claramente as medidas gerais anticovid de valor bem estabelecido (máscaras, arejamento dos locais, etc).

O foco tem de ser na vacina, nunca na testagem. Todos necessitamos de ter tido uma injecção nos últimos quatro a cinco meses para podermos circular livre e responsavelmente.

Se queremos que a covid se torne mesmo numa “gripezinha” temos que nos esforçar um pouco mais. Aí seremos de novo livres.

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