Porque não te calas, D.?

2021 foi um ano estranho. Houve, de facto, desafios e mudanças. Talvez os principais sejam relacionados com a depressão. Agora encaro a depressão como uma grande elefanta que insiste em acompanhar-me para onde quer que eu vá. Chamemos-lhe D.

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Dia 31 de Dezembro de 2021 os nossos polegares desfilaram por carrosséis de retrospectivas de um ano que findara. Legendadas com palavras como “desafio”, “mudança”, “grat@”, as memórias mostravam sorrisos e paisagens e convidavam o espectador a pensar no seu ano.

2021 foi um ano estranho. Houve, de facto, desafios e mudanças. Talvez os principais sejam relacionados com a depressão. Agora encaro a depressão como uma grande elefanta que insiste em acompanhar-me para onde quer que eu vá. Chamemos-lhe D.

Deixem-me dizer-vos que não me lembro bem do dia em que abri a porta à D. Lembro-me que ela foi entrando ao longo dos últimos anos, invadindo o meu espaço devagarinho e que eu a fui ignorando. O que foi uma decisão muito má quando se vive num pequeno estúdio numa cidade estrangeira. Escusado será dizer que não foi a melhor companheira do confinamento de Março de 2020. Insistia em dizer que eu não era capaz. Também não era nada adepta de distância social. Colava-se a mim bem coladinha para que pudesse ouvir tudo o que me tinha para dizer. Como se isso não fosse suficiente, enrolava também a sua tromba no meu pescoço, para que não tivesse frio, dizia. Pois sim, e respirar e fazer zumba por Zoom assim? Difícil.

A resolução da D. para 2021 era proteger-me. Do quê? Não sei bem. Mas a verdade é que nesse Janeiro já era uma elefanta adulta e mandona. Não me deixava ir ter com os meus amigos, dizia que o melhor era eu estar em casa. Para quê sair, afinal, se ninguém queria saber de mim? E lá punha a sua tromba em cima da minha garganta dificultando as respirações profundas que tanta gente me aconselhava. Também não me deixava trabalhar. Essa parte foi particularmente chata pois tinha um doutoramento para acabar. Mas ela não me ouvia e só me dizia que não valia de nada, para ir casa, para sair do escritório e fugir. A D. ficava tão feliz de eu fazer o que me pedira que celebrava com banquetes gigantes. E pronto, lá ficava eu em 22 metros quadrados, sentada num sofá-cama a vê-la jantar, toda contente. Claro está que ganhou peso. Assim vivemos durante uns meses: ela bem imponente, eu bem mingada.

Um dia, a D. adormeceu em cima mim. Nunca senti tão presa na minha vida. Lutei para me libertar daquela elefanta monstruosa que estava na minha vida. Tentei gritar, mas não saía ar quanto mais voz. Chorei, implorei que saísse, que não conseguia viver mais assim. Ela tinha que perder dimensão ou eu… Deixei-me afundar no buraco escavado pelo peso da D. O buraco tornou-se a minha casa, depois a minha vida.

Abril chegou e talvez o cheiro da Primavera, ou o prazo de entrega da tese a apertar, fez-me querer escapar. Nos meses que se seguiram, a minha resolução para 2021 passou a ser afastar a D. da minha vida. Pedi ajuda em todas as frentes. Fui ganhando fôlego, depois ar, e depois voz. Disse-lhe que não precisava de ser protegida, que se queria ficar comigo (tenho alguma dificuldade em dizer que não) tinha que ficar sossegada a um canto e deixar-me em paz.

Nem sempre foi fácil. A D. discutiu várias vezes os termos e condições do acordo que lhe proponha, fazendo-me ver que não conseguiria fazer nada da minha vida e que só estaria bem com ela. Mas eu já não estava sozinha. Tinha uma psicóloga que mediava os meus conflitos com a D. e uma psiquiatra que lhe dera um comprimido para emagrecer. Família, namorado e amigos também queriam ajudar. Mas só conseguiram quando deixei de lhes esconder a D. Afinal, é a minha sombra.

Acabei o doutoramento, deixei o pequeno estúdio, voltei para Portugal. A depressão ainda veio comigo, mas já não precisei de pedir um lugar extra no avião. Lentamente, a D. foi mingando e desenrolando a sua trompa da minha garganta. Agora cabe num cantinho da casa. Ainda gosta de opinar. Quando isso acontece, já vou conseguindo - com o apoio da minha psicóloga - respirar fundo, olhar para ela e com toda a calma do mundo dizer: “Porque não te calas, D.”?

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