E depois do ano do coelho?

Bad Bunny voltou a provar que não acaba na discoteca. Se o laboratório de ritmos deixa o ouvido intrigado, a longo prazo desmontam-se as letras. Fazem-se cantigas de escárnio e maldizer à pobreza. Cruza-se o conformismo das drogas e o inconformismo na hora de vestir.

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Bad Bunny dr

Não é estranho Bad Bunny terminar o ano em grande. Pela segunda vez consecutiva, o rapper porto-riquenho foi o artista mais ouvido no Spotify, somando cerca de 9,1 mil milhões de reproduções. Já é quase marca de confiança. Quando nos confins de uma melodia se vocalizam as palavras Bad Bunny, goste-se ou não somos obrigados a escutar.

2021 permitiu a Benito Ocasio colher os frutos do seu trabalho e mostrar alguns truques que tinha na manga. Tudo isto sem lançar um único álbum. Entre o primeiro Grammy e uma tournée mundial esgotada, o cantor coleccionou proezas ao tornar-se presença regular nas tabelas, aventurar-se na produção de El Playlist de Anoche de Tommy Torres, entrar no universo televisivo pela mão da série Narcos e subir ao pódio da WrestleMania. Foi o culminar de um efeito dominó, com as primeiras peças alinhadas em plena pandemia.

Para explicar o fenómeno, há que escavar as suas origens, enraizadas, claro está, na música. Depois do disco X 100pre assinalar uma estreia de génio, Bad Bunny escolheu o segredo do seu sucesso como título da sequela Yo Hago Lo Que Me Da La Gana (YHLQMDLG). Em Fevereiro de 2020, uma carta de amor aos sons formativos do artista ganhava forma, dos nomes de peso do reggaeton às batidas apanhadas em festas de garagem. O tão desejado crossover latino dava ares da sua graça, desta vez sem a necessidade de trocar de idioma.

A fome abriu caminho à fartura com a apresentação de Las que No Iban Salir. Face a um confinamento que pedia entretenimento, Bad Bunny converteu parte da sua caixa de Pandora num CD de faixas bónus. Poucos meses mais tarde, a compilação de inéditos que não devia ver a luz do dia era lançada aos holofotes, dispensando interpretações de maior.

Até que, do cimo de um camião, se avistou o xeque-mate. O fim do ano trouxe El Último Tour Del Mundo e, com ele, uma viagem até a um futuro pintado em tons acobreados. Criações repletas de identidade sentavam-se ao volante. A reboque, vinha a honra de ser o primeiro álbum totalmente em espanhol a escalar até ao topo da Billboard.

Fez-se História, escrita e pensada na reclusão de quatro paredes. Por um lado, a imagem de marca do músico saltava à vista - perrear de coração cheio e cabeça vazia. Por outro, o estrelato pertencia à sonoridade, definida pela fusão do tradicional no reggaeton, do trap no emo, do rap no rock latino a lembrar os 2000. Assim nasceu a receita que destronou 64 anos de supremacia de álbuns falados em inglês.

Bad Bunny voltou a provar que não acaba na discoteca. Se o laboratório de ritmos deixa o ouvido intrigado, a longo prazo desmontam-se as letras. Fazem-se cantigas de escárnio e maldizer à pobreza. Cruza-se o conformismo das drogas e o inconformismo na hora de vestir. Amores e desamores, a velocidade de um bom carro, a luta pelo êxito. São páginas de diário, cuja genuinidade facilmente alarga públicos.

À beira da próxima etapa, sigo o exemplo de quem arriscou prever a sua última digressão e atrevo-me a lançar as cartas. Com quatro álbuns de estúdio, Benito Ocasio conquistou o mundo, a fazer de tudo para todos. Os vitoriosos “estoy en mi peak” da canção Booker T e até rumores de uma eventual reforma confirmam isso mesmo. Porém, a notória vontade de não olhar a zonas de conforto leva a crer que o pico ainda está longe.

Afinal, o futuro sempre foi escrito pelos que marcham ao seu próprio compasso. Que venham muitos mais anos do coelho!

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