Governo procura “conforto” com parecer da PGR, mas pode alterar regras de isolamento

Constitucionalistas dizem que basta ao executivo alterar a resolução do Conselho de Ministros sobre confinamento para permitir que infectados e outros isolados possam votar. O problema é a forma de garantir a segurança sanitária.

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Ministra da Administração Interna pediu parecer ao Conselho Consultivo da PGR Rui Gaudencio

Não há um problema jurídico que impeça os confinados devido à pandemia de covid-19 de irem votar, estejam infectados ou apenas em isolamento profiláctico por terem tido contactos de alto risco. Os constitucionalistas Vitalino Canas e Jorge Bacelar Gouveia defendem que a solução está nas mãos do Governo, bastando-lhe alterar a resolução do Conselho de Ministros sobre o estado de calamidade em que foram definidas as regras de confinamento.

A questão foi levantada na reunião do Infarmed em que sobressaíram as preocupações dos políticos com o direito ao voto das pessoas que ficarem confinadas na última semana antes das eleições, e que já não terão acesso ao voto antecipado. Os partidos querem uma solução e o Governo avançou com um pedido de parecer jurídico urgente ao conselho consultivo da Procuradoria Geral da República, formulado pela ministra da Administração Interna e da Justiça, no sentido de saber se as pessoas isoladas estão impedidas de ir votar.

“No fundo, constitucionalmente, o que deve prevalecer: a restrição à liberdade de circulação decorrente da determinação de isolamento pelas autoridades de saúde ou a liberdade de voto? E como se faz a concordância entre esses dois interesses constitucionais em presença, de protecção da saúde pública e de exercício do direito de voto?”, revelaram fontes governamentais. Pede-se ainda que o parecer se pronuncie tanto em relação aos infectados, como aos que estão em isolamento profiláctico.

Para os constitucionalistas ouvidos pelo PÚBLICO, o direito ao voto é um pilar estruturante do Estado de direito e não está suspenso, sendo o problema a compatibilização desse direito com as questões de saúde pública. Em termos jurídicos, a solução é simples e está nas mãos do Conselho de Ministros. “Os problemas de constitucionalidade estão na resolução do Conselho de Ministros, mas já que está em vigor pode ser alterada”, diz Vitalino Canas. Já a Assembleia da República, mesmo que não estivesse dissolvida, está impedida de alterar as leis eleitorais em vésperas de eleições – aliás, fê-lo em Novembro passado, antes da dissolução, quando prorrogou para 2022 as regras excepcionais de recolha de votos a doentes confinados e aumento do número das mesas aprovadas para as eleições de 2021.

A questão é, pois, sobretudo política: abrir uma excepção ao confinamento para ir votar pode ser mal interpretado pela opinião pública e aumentar os riscos de contágio comunitário por causa do voto dos infectados. Bacelar Gouveia diz que a questão se resolve com a “ponderação de bens jurídicos, uma vez que o direito ao voto está acima de outros direitos, é um pilar fundamental do Estado de direito”. Paulo Otero diverge: “Se há razões de saúde pública, relativas a toda a comunidade, que justificam o isolamento, não podem ser postas em causa.”

Nesse sentido, o parecer do conselho consultivo da PGR apenas “dará conforto ao Governo”, diz Otero, uma vez que se trata de “uma instituição independente e competente”, nas palavras de Bacelar Gouveia. Mas isto só se tornou necessário, porque, acrescenta Gouveia, “os políticos não fizeram o trabalho de casa e não quiseram fazer uma lei de emergência sanitária”. “Tudo isto era previsível e evitável”, frisa Otero.

O problema é como compatibilizar o direito político ao voto com as questões sanitárias, e aqui os constitucionalistas avançam com algumas soluções possíveis dentro da lei eleitoral em vigor: estabelecer horários específicos para os confinados, como diz Vitalino Canas, ou mesas de voto específicas para eles, como sugere Paulo Otero, apesar de considerar que é “pouco exequível”, sobretudo em assembleias de voto mais pequenas.

“Precedente perigoso”

Suspender a ordem de isolamento profiláctico para permitir o voto nas legislativas “pode abrir um precedente perigoso”, avisa o vice-presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, Gustavo Tato Borges. “Não tardaria, teríamos pessoas a evocar a necessidade de levantamento do isolamento para tratarem de um negócio importante ou assinarem um contrato.” Por isso, a solução “não parece a melhor, do ponto de vista da saúde pública”, entende o especialista.

Tato Borges acredita que, a 30 de Janeiro, “serão muito poucas as pessoas em isolamento”, face à revisão das orientações da DGS sobre os contactos de alto risco. Por isso o “esforço” que diz ser necessário para garantir que o voto destes eleitores é feito em segurança para todos os envolvidos “pode não valer a pena”.

“A ser feito, teria de ser com muita cautela.” Os eleitores em isolamento deviam ter mesas de voto dedicadas e tanto estes como as pessoas que trabalham nas secções de voto teriam de usar máscaras FFP2, que garantem maior nível de protecção, propõe. Idealmente, o horário de votação de cada eleitor também devia ser previamente agendado, para evitar aglomerações.

Partidos querem solução

Após a reunião do Infarmed, os representantes dos partidos com assento parlamentar mostraram preocupação com o número de eleitores que podem vir a estar em isolamento profiláctico na semana entre 23 e 30 de Janeiro, sem possibilidade de exercerem o direito de voto. Só os eleitores que se inscrevam entre 20 e 23 de Janeiro na plataforma www.votoantecipado.mai.gov.pt/ podem ter o seu voto recolhido no seu domicílio. Mas os eleitores que estiverem em isolamento a partir de dia 23 e até dia 30 estão, neste momento, impossibilitados de votar.

Com escassa informação sobre como contornar o problema, o PSD mostrou disponibilidade para encontrar uma solução, posição mais tarde corroborada pelo líder do Chega, André Ventura. O vice-presidente da bancada social-democrata Ricardo Baptista Leite salientou, no entanto, que qualquer cenário “terá de salvaguardar a segurança dos cidadãos”, já que “se o isolamento profiláctico existe é para evitar a transmissão excessiva da variante Ómicron”.

O deputado admitiu que podem existir centenas de milhares de pessoas em isolamento a 30 de Janeiro e lamentou que o problema não tenha sido equacionado há mais tempo. A “falta de previsão legal” para lidar com a situação é inaceitável para o CDS. Filipa Correia Pinto exigiu que o Governo apresente uma solução, que pode passar por um “sistema extraordinário de voto por correspondência”, um “reforço de recolha do voto no domicílio” ou a “criação de secções de voto específicas”. O que é preciso, defendeu, é evitar uma perturbação do processo democrático. Todavia, na perspectiva de Rui Rocha, dirigente da Iniciativa Liberal, isso parece inevitável: “Com 4% a 12% dos portugueses em isolamento vai haver dificuldade em termos resultados credíveis.”

Moisés Ferreira, do Bloco de Esquerda, avançou com outra proposta, ao apelar que os eleitores aproveitem a modalidade do voto antecipado em mobilidade a 23 de Janeiro para “evitar que, à última hora, uma infecção, um isolamento, um confinamento possa impossibilitar o direito ao voto”. A mesma sugestão foi deixada por Bebiana Cunha, do PAN. “O Governo deve fazer tudo para garantir que as pessoas se podem inscrever no acto eleitoral antecipado”, defendeu. Por seu turno, de forma mais genérica, Bernardino Soares, membro do comité central do PCP, advogou que “devem ser tomadas as medidas para garantir o direito ao voto” que “não pode ser postergado por determinações administrativas ou insuficiência de meios”.

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