Juiz natural em processo penal: o Estado de Direito perdeu-se no combate ao “forum shopping”?

Há um dado que não pode ser olvidado que é a importância do juiz natural como um dos pilares do Estado de Direito no processo penal.

1. Muitas vezes em descontraídas conversas com colegas constitucionalistas me interrogo sobre o verdadeiro Direito Constitucional a ensinar.

A pergunta tem a sua pertinência porque muita suscita a aplicação a contraposição law in books” versus “law in action”.

O pior é que essa desconformidade não é em favor das pautas constitucionais e da proteção das liberdades fundamentais.

Pense-se nos atropelos aos direitos e à separação de poderes que a pandemia veio evidenciar, quer ao nível do Estado, quer ao nível das regiões autónomas.

O caso mais gritante – no meio de outros, havendo que louvar os tribunais que, dando provimento a instrumentos de habeas corpus, salvaram a “honra constitucional” de Portugal – é o da recente Lei n.º 88/2021, de 15 de dezembro, que fez rebaixar ao nível da função administrativa algo que, pela sua delicadeza, só podia ser regulado por ato legislativo.

Com o cúmulo de a própria Assembleia da República assim ter feito antes, dando agora o “dito por não dito”, e ajoelhando-se às mãos de um poder executivo (minoritário), numa inconstitucionalidade que faria reprovar um aluno em Direito Constitucional.

Este desencanto ainda se assinala na atividade parlamentar em geral, que se “demitiu” da discussão das reformas de que Portugal carece e que, ao invés, vai soçobrando no casuísmo folclórico, até oferecendo resoluções sobre a necessidade de combater a “pobreza menstrual”.

2. Vem isto a propósito de notícias recentes que lançaram dúvidas acerca dos procedimentos relativos à redistribuição de processos após a nova legislação sobre o “Ticão”.

A comunicação social não se coibiu de fazer duras acusações de que a mudança na sua titularidade poderia “facilitar” a vida de indivíduos envolvidos com o aparecimento posterior de magistrados dotados de outras características.

Porém, como constitucionalista, considero que há um dado que não pode ser olvidado, que é a importância do juiz natural como um dos pilares do Estado de Direito no processo penal.

3. O “juiz natural” (art. 32.º da CRP) tem um fundamento óbvio, que a pessoa menos letrada compreenderá: evitar que em processos judiciais já atribuídos não ocorram intervenções extrajudiciárias – administrativas, neste caso – que tragam o risco de mudar decisões tomadas em resultado da redesignação posterior de outros magistrados.

É certo que o juiz natural tem de comportar limites óbvios, os inerentes à natureza das coisas: as mudanças impostas pelas vicissitudes da carreira judicial, mas só isso e a título excecionalíssimo.

Não parece que seja o caso, até porque a nova lei refere que os processos já atribuídos se devem manter com os magistrados indicados.

Como do mesmo modo não seria pelo facto de essa legislação permitir decisões administrativas dos órgãos de governo das magistraturas, por maior que seja a gritaria da “eficácia processual”, que se salva da inconstitucionalidade por violação do juiz natural penal.

4. Todo o cuidado é pouco para não se fulanizar a judicatura, com tudo o que isso tem de pernicioso. Lembrando a célebre expressão do “treaty shopping” oriunda do Direito Fiscal Internacional, urge impedir o “forum shopping”, que seria um retrocesso inadmissível no plano do Constitucionalismo Democrático cujas portas o 25 de Abril de 1974 abriu de par em par.

Muitos consideram que, perante a evidente e generalizada “captura” do poder político pelos mais variados e inconfessáveis interesses, é na Justiça que repousa o “kern” irredutível do Estado de Direito Democrático.

Sendo aquela conclusão cada vez mais loquaz, ao menos que não suceda como se confabula. Quero acreditar que não e espero que, pelo menos aqui, a Constituição Portuguesa sirva para alguma coisa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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