Portugal não varre história para debaixo do tapete

O historiador Francisco Bethencourt fez recentemente várias considerações sobre o que deveria ser a política de memória em Portugal. Essas considerações suscitam-me objecções, que desenvolverei em dois artigos diferentes, começando com as que se prendem com a disciplina de História no nosso ensino básico e secundário.

A esquerda woke e politicamente correcta faz, de há anos a esta parte, forte pressão para alterar os programas do ensino dessa disciplina. Isso tem sido defendido no nosso país por Joacine Katar Moreira, Fernanda Câncio e outras vozes dessa área política, e por quem nos visita com recados e directivas supostamente anti-racistas. De facto, não há ninguém que venha da ONU com o rótulo de “perito” e de “anti-racista” que não insista na necessidade de alterar os programas de História.

Francisco Bethencourt é mais uma voz desse coro. Desta vez incita-nos a “corta(r) claramente com uma narrativa herdada da propaganda salazarista”. Acrescenta que “não faz sentido continuar a falar de exploradores intrépidos, descobrimentos geográficos e conquistas, ao mesmo tempo que se varre para debaixo do tapete os milhões de escravos transportados de África para as Américas, a violência da colonização, a criação de sociedades esclavagistas.” E, no seguimento destas considerações, pede que, em nome “de uma política responsável de memória que nos reconcilie com os novos países independentes”, se alterem os programas da disciplina de História do secundário de modo a que passem a traduzir a “renovação de que foi objeto a história de Portugal nos últimos cinquenta anos”.

A meu ver há aqui um engano e um erro de paralaxe, causados pela ideologia. Varrer para debaixo do tapete implica a acção voluntária de esconder. Será isso que se passa no nosso ensino? Será isso que está em causa? Tenho afirmado repetidamente, e desde o primeiro artigo que escrevi no contexto deste debate, que nada se esconde no que diz respeito à escravidão, ao tráfico de escravos e ao envolvimento dos portugueses nesse trágico comércio. Se havia coisas debaixo do tapete — e efectivamente havia — esse tapete foi levantado, foi batido e tudo o que tinha sob si está aí, na atmosfera, ao alcance de qualquer nariz. Eu fui um dos que se preocuparam em levantar o tapete e em sacudir-lhe o pó. Desde o século passado que escrevo livremente sobre esse assunto, em livros, artigos académicos e na imprensa (onde, nos últimos cinco anos publiquei mais de 40 textos sobre os temas do tráfico e da escravidão). Mas isto não quer dizer que advogue que todo o pó que se descobriu passe na íntegra, às pazadas, para o ensino básico e secundário.

Não me parece que esse ensino deva ser caixa de eco de lutas políticas e ideológicas. A história humana está, lamentavelmente, repleta de brutalidade e de sofrimento, mas o objectivo do ensino da disciplina de História no básico e secundário não é — e espero que continue a não ser — reproduzir uma câmara de horrores.

Por isso, os professores falam aos alunos do 7.º ano da Atenas do século V a. C., na democracia ateniense, na importância dessa democracia para as sociedades ocidentais, em Péricles e noutros vultos da Grécia Antiga, mas passam muito pela rama pela escravidão que servia de suporte à vida em Atenas. Querem que o aluno identifique os conceitos de cidadão, meteco, escravo, mas não se demoram muito sobre a vida deste último. Daí que não expliquem aos alunos que nas minas de prata e chumbo de Laurion, a 50 kms a sul de Atenas, se vivia aquela que terá sido, talvez, a situação mais extrema e horrorosa de toda a história da escravidão. Em meados do século passado, Bernard Knox, um nome famoso nos Estudos Clássicos, visitou as minas da Laurion e desceu à sua parte mais profunda. Os poços da mina, pelos quais se descia por escadas, tinham dois metros de diâmetro. No fundo desses poços os escravos eram forçados a gatinhar por galerias ou túneis com um metro de altura e menos do que isso de largura. Knox feriu as mãos e os joelhos ao avançar por esses túneis e ficou entalado numa curva do trajecto quando tentou recuar. E todavia, no século V a. C., milhares de mineiros escravos trabalhavam neste cenário de pesadelo durante dez horas por dia. Muitos desses escravos entravam nas galerias da mina e lá morriam ao cabo de semanas ou meses, sem, por vezes, terem voltado a ver a luz do sol.

Nada impede que um ou outro professor conte isto aos seus alunos, mas o manual (usei o da Porto Editora) pede apenas que se lhes ensine que os escravos eram geralmente prisioneiros de guerra ou condenados, homens e mulheres que não tinham liberdade e que podiam ser vendidos e comprados como se fossem mercadorias. Considera-se isso bastante e não se entra em mais detalhes sobre a vida desses infelizes. Porquê? Será por má-fé de quem pretende enaltecer a democracia ateniense e varrer para debaixo do tapete a escravidão e outros horrores de que essa vida democrática se servia? Suponho que qualquer pessoa perceberá que o que está aqui em causa é meramente uma questão de razoabilidade, de adequação dos conteúdos programáticos à audiência e de equilíbrio das matérias leccionadas.

Algo de idêntico se passa com a história do tráfico transatlântico de escravos e das suas penosíssimas circunstâncias. Pegue-se num manual do 8.º ano (para diversificar a amostra usei, desta vez, o da Raiz Editora). Aí se explica, a propósito da expansão marítima portuguesa, que, como os indígenas brasileiros não se adaptavam aos duros trabalhos das plantações, importaram-se escravos africanos em grande número. Acrescenta o manual que as populações africanas foram das mais atingidas pelo tráfico de escravos, e que a escravatura era justificada como meio de evangelizar e civilizar populações consideradas inferiores. O manual mostra, ainda, a conhecida gravura da coberta de um navio negreiro, da autoria de João Maurício Rugendas, acompanhada da seguinte legenda: “Milhões de seres humanos foram transportados de África para as Américas, acorrentados no porão de navios, sem condições de higiene e com alimentação deficiente, em viagens que duravam várias semanas”. Por fim, como exercício temático, pede-se aos alunos que redijam um texto de opinião sobre a escravatura.

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João Mauricio Rugendas

Isto é, a meu ver, perfeitamente suficiente nesta etapa da aprendizagem. E outro tanto se diga relativamente ao ensino secundário, a avaliar pelos manuais a que tive acesso. Os temas da escravidão e do tráfico negreiro são, a esse nível, muito mais desenvolvidos — o manual do 10.º ano da Areal, por exemplo, dedica-lhes sete páginas inteiras —, mas sempre de forma adaptada à idade dos alunos. Não se trata de varrer coisas para debaixo do tapete por razões que teriam que ver com propaganda herdada do salazarismo. Trata-se, tão-só, de ensinar as matérias de uma forma adequada, respeitando o nivel etário e o sentido das proporções. A referência ao tráfico negreiro não deve ser omitida, nem deve ser hiperdimensionada, e julgo que os actuais programas e manuais escolares mantêm esse equilíbrio. Ao contrário do que pretende Francisco Bethencourt e outras vozes da esquerda politicamente correcta, o ensino da história dos Descobrimentos e da expansão marítima portuguesa está bem e recomenda-se.

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