A propósito das alterações climáticas

Sem se enfrentar o problema das desigualdades, criando um mundo mais justo, mais pacífico e ppróspero para todos, o combate às alterações climáticas estará condenado ao fracasso.

As chuvas tumultuosas em Moçambique, os tornados nos Estados Unidos, as ondas de calor tórrido em certas regiões e muitos outros fenómenos extremos, com as enormes tragédias humanas e ambientais que provocam, são o instantâneo visível, captável pelo imediatismo dos media e divulgado apressadamente em notícias que rapidamente esquecemos. Os exércitos de deslocados, de refugiados, de populações famintas, doentes, crianças sem futuro, ficam para depois, em reportagens nos canais reservados. O impacto das primeiras imagens dilui-se rapidamente no tempo. São acontecimentos longínquos, que afetam gente completamente ignorada, entregue à sua má sorte.

O quadro é assustador. A população mundial quase que triplicou nos últimos 70 anos. Em 1950 era de 2500 milhões de pessoas e, atualmente, estima-se em cerca de 7 mil milhões de pessoas. Destas, mais de 75% vivem em países subdesenvolvidos e cerca de 10% vivem (?) no limiar da pobreza, com menos de dois dólares por dia. O crescimento rápido da população mundial criou desequilíbrios trágicos no acesso a recursos, sejam eles alimentares, energéticos, de assistência à saúde, condições dignas de vida, provocando a deslocação descontrolada de massas enormes de populações para a periferia das grandes metrópoles, criando amontoados de gente e destroços, espalhados de qualquer forma, sem segurança, sem conforto, sem espectativas. Segundo a ONU, atualmente 55% da população mundial vive em áreas urbanas e a expectativa é de que esta proporção aumente para 70% até 2050.

A edição deste ano de O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo, refere que, com a pandemia, a má nutrição persistiu em todas as suas formas, com as crianças pagando um preço alto: em 2020, estimava-se que mais de 149 milhões de crianças menores de 5 anos sofriam de desnutrição crónica e mais de 45 milhões tinham desnutrição aguda. A alimentação saudável permaneceu inacessível para três biliões de adultos e crianças.

Como explicou a cronista do PÚBLICO Susana Peralta, com uma clareza e pedagogia invejáveis, num artigo recente intitulado Os impostos que os ricos não pagam e o que podíamos fazer com eles, (cito) os “10% mais ricos do mundo ficam com 52% do rendimento mundial (antes de impostos, mas considerando pensões e subsídios de desemprego), ao passo que a metade mais pobre tem apenas 8,5%”. Dados mais detalhados foram recentemente publicados pelo banco Crédit Suisse, que mostram a enorme diferença entre as regiões mais ricas e mais pobres do mundo. A África e a América Latina controlam apenas 1,14% e 2,75% da riqueza do mundo, enquanto os Estados Unidos detêm 30% da riqueza do mundo, a China em segundo lugar com 17,7% e o Japão em terceiro com 6,93% dessa riqueza.

A distribuição chocantemente desigual de riqueza, traduz-se em que uma pequena parte da população mundial tem muitíssimo mais do que precisa, consome recursos de forma obsessivamente ávida, em nome da ilusão de um crescimento infinito, que beneficia poucos em detrimento dos muitos que estão condenados a sobreviver sem perspetiva, no limiar da subsistência ou pobreza. E isto sem que se vislumbre qualquer sinal de solidariedade, de qualquer mínimo sacrifício para regrar consumos e desperdícios excessivos.

As grandes tecnológicas criam necessidades de satisfação insaciável por tecnologias completamente inúteis, a não ser para manter e multiplicar os seus lucros astronómicos, como vem acontecendo nos anos recentes de pandemia, criando exércitos de ignorantes, indigentes, de cretinos digitais (segundo Michel Desmurget), privilegiados, mas indiferentes a tudo o que se passa para além da realidade virtual criada à medida dos seus instintos cada vez mais primários.

É este o progresso, aliado à revolução digital anunciada com pompa, e apadrinhada pelos vários poderes políticos. Revolução que servirá a alguns, mas criará exércitos de desempregados, deslocados e de esquecidos. Mas serão os primeiros, os indigentes digitais, que futuramente deterão os poderes de decisão política, mantendo os seus discursos pseudo-humanistas, de uma hipocrisia chocante, que mais não fazem do que preservar o nicho em que vivem.

Depois da libertação das ameaças fascista e comunista, à custa de tanta coragem e dor, é este o mundo atual com tão drásticas e chocantes assimetrias, submetido aos encantos da economia de mercado, liberal e desregulada, vergada aos interesses dos novos imperialismos ocidentais e orientais. No quadro atual, a decisão política está demasiado comprometida com o status e com uma teia de interesses à escala global, não sendo espectável que produza soluções eficazes de combate às Alterações Climáticas. Medidas frouxas e pontuais, produzidas por políticos locais ou pelas cimeiras, dos G7, G8, dos COPx, que, com toda a pompa e circunstância, nos anunciam promessas e miragens de um mundo transformado, enquanto ignoram de forma humilhante as vozes da ONU, OMS, organizações não governamentais e outros, são meros placebos que adiam o problema sem beliscar minimamente os poderosos lobbies instalados. E, se alguns diminuem a sua influência, outros os substituirão, não sendo garantida a sua eficácia.

Sem enfrentar o problema das desigualdades, criando um mundo mais justo, mais pacífico, que garanta dignidade de condições de vida a todos, que acabe de vez com o flagelo da fome, a mortalidade infantil, a exploração de mão de obra infantil e dos novos escravos; que acabe de vez com os conflitos regionais, disfarçadamente controlados por poderes na sombra, e com o sofrimento indescritível das massas de deslocados e refugiados que provocam. Sem uma mais justa distribuição de riqueza, taxando lucros astronómicos e fugas a impostos de valor colossal (ver o artigo citado de Susana Peralta), gerando receitas que financiem programas de apoio em dinheiro e em espécie para diminuir o impacto nas populações mais vulneráveis, de choques do tipo pandémico, calamidades climatéricas, guerras e conflitos. Sem políticas humanitárias, de desenvolvimento e de consolidação da paz em áreas de conflito, e um eficaz controlo das redes de tráfego humano, responsáveis pelo novo comércio de escravos do século XXI. Sem políticas de proximidade das populações. Sem um novo paradigma económico e sem políticas educacionais, ambos sustentados nos valores humanistas da justiça, igualdade e solidariedade, e que relativizem a importância das tecnologias, colocando-as ao serviço do bem comum. Sem o envolvimento das elites, científica, política, religiosa e outras, organizadas em torno de um programa em prol do bem global. Sem planos pela preservação dos habitats e respeito pela natureza, fazíveis desde que haja a consciência coletiva da sua urgência, sem a qual nos encaminhamos para uma situação tragicamente sem retorno. Sem tudo isto, as medidas atuais de combate às alterações climáticas estarão irremediavelmente condenadas ao fracasso, ou atiradas para um futuro que já não existirá.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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