O que está em causa

A política está mais colorida, mas é absolutamente supérflua.

“O que está em causa nas próximas eleições legislativas” é uma expressão que anda na boca de muitos dirigentes políticos, quase todos a viverem a crença tácita de que os eleitores os acompanham, de cada vez que os jornalistas lhes apontam um microfone. Por regra, e em respeito por uma linguagem fantasiosa, a classe política recorre a expressões abstractas e a chavões gastos, inúteis, apoteóticos e quase destituídos de sentido, com o claro propósito de dar uma aparência de solidez à argumentação: “o país bem sabe quem defende os seus interesses”, “é disso que os portugueses precisam” e outras generalizações. Para lá do facto de haver quem viva do instinto de plateia e se esqueça de que, nas últimas décadas, os eleitores votantes representam uma pouco significativa fracção do eleitorado, essa história do país e dos portugueses não passa de uma comunidade imaginada (como lhe chamou Benedict Anderson, a propósito da sua análise do nacionalismo) que a maioria dos políticos invoca, com a mesma natureza delirante com que, num filme de Fellini, um homem, a falar para uma multidão que aos poucos se dissipa até não ficar ninguém, termina o seu discurso sozinho e em cumplicidade com uma marca na parede do fundo.

Mais do que defenderem um ideário, uma perspectiva política ou uma causa, a preocupação inicial dos dirigentes políticos resume-se a serem escutados. Para eles, a massa anónima, que antevêem como apoiantes, é uma imensa orelha à escuta. Ciente disso, o jornalismo primário amplifica as suas vozes até à exaustão, rejubilando no palavreado das quezílias partidárias e dos estéreis congressos políticos. Num curto espaço de tempo fomos trucidados pelas bazófias de Rio e Rangel e encorajados a testar a nossa paciência ao ritmo da ópera bufa da sua reconciliação em congresso nacional. A política está mais colorida, mas é absolutamente supérflua.

E o que vai a jogo no dia 30 de Janeiro? Nada para que a sociedade portuguesa não esteja já vacinada. A social-democracia portuguesa (actualmente a habitar em paredes-meias com o socialismo democrático), não completamente desfiliada de um certo conservadorismo classista do Estado Novo, tem por trás uma força motriz que é a crença na desigualdade humana. Como bom partido que é, o PSD consagra nos seus princípios a “superação das desigualdades de oportunidades”, bem como a “igualdade de oportunidades na Comunidade”, ainda que vinque “o liberalismo político e a livre iniciativa caracterizadora de uma economia aberta de mercado”, que, deixemo-nos de eufemismos, mais não é do que um sistema competitivo no qual o lucro é o objectivo principal, gerador, entretanto de desigualdades. Para os casos da Educação e da Saúde, este é o tipo de partido que mostra não confiar no Estado, a quem jamais entregaria a regulação e responsabilidade por todo o sistema educativo (na Finlândia não há sistema educativo privado), e que vê na Saúde empreendimentos comerciais e económicos destinados a firmar negócios da China. Tudo isto para dizer que a social-democracia portuguesa vê com bons olhos a coexistência de escolas de primeira e de segunda, hospitais de elite e hospitais públicos, gente de primeira, segunda e terceira classes. Qualquer pessoa com dois dedos de testa percebe o PSD é o género de partido que descobriu na democracia o terreno ideal para impedir as classes mais pobres de se aproximarem da classe média e, genericamente falando, para autorizar uma elite empresarial, política e intelectual a gerir os seus privilégios sem que alguém a questione. Não é de esperar que um partido como o PSD proponha a fixação de um salário mínimo nacional muito mais próximo do salário médio, sem que o velho tabu do classismo e dos privilégios de classe sejam pretexto de enormes e escrupulosas resistências. Tem de se admitir – embora poucos arrisquem este raciocínio –, que o PSD, por favorecer um sistema de castas, é um partido antidemocrático, tendência que, tradicionalmente e à custa de um argumentário conhecido, imputa a outros.

Quanto ao socialismo, estamos conversados. Tratando-se de um ideário que apregoa uma sociedade sem classes nem proprietários, e que repudiou o neocapitalismo por não salvaguardar a igualdade social (não faria mal ler a Declaração de Princípios do PS de 1974), é evidente que o Partido Socialista vendeu a alma ao diabo. Nem sequer os grandes sindicatos estão com o PS, como é bom de ver, e a UGT, desde há décadas, tem prestado serventia ao grande sector empresarial privado, limitando a acção ao sindicalismo mais reivindicativo. Se se quiser identificar um período em que o PS atraiçoou o seu próprio programa, essa não é, seguramente, uma tarefa fácil: serviu de tampão ao extremismo de esquerda nos anos 1970 (com Melo Antunes a entregar ao sector privado algumas fatias do Estado), permitiu a privatização de empresas estratégicas fundamentais (EDP, REN, TAP) dos anos 1990 a meados dos anos 2000, estabeleceu, com o PSD, ao longo deste século, um jogo de interesses, promiscuidade e prevaricação entre o poder económico privado e o poder político, com enorme prejuízo para a classe trabalhadora, e que, nos últimos anos (e dias) tem redundado em inúmeros processos judiciais. Era de esperar mais dos socialistas, é certo, especialmente por se dizerem socialistas. Já sabíamos que o tinham metido na gaveta, só não sabíamos que ela tinha um fundo falso. Eis a razão de se ter tornado um partido mais odiado do que outros, mesmo quando esses geravam garantidos anticorpos. Quanto ao resto, a docilidade da sociedade portuguesa tem dado cobertura a tudo isto e ela mesma tem provado do que semeou.

Finalmente, à esquerda – aquilo a que só por má-fé (e a direita sempre teve pergaminhos nessa matéria) se pode apelidar esquerda radical –, incapaz de fazer mossa ao capitalismo privado de que ela mesma faz parte (no sentido em que não é possível determinar, actualmente, o que é um bem de consumo separado de uma economia de mercado (privado) – alguém, por divertimento, costuma lembrar que os comunistas bebem Coca-cola), à esquerda, dizíamos, apenas lhe resta denunciar os privilégios de classe, denunciar os subornos e negociatas que envolvem ex-deputados, ministros (quase todos saídos da díade PS/PSD), banqueiros e empresários, insultar o Partido Socialista, antagonizar (e bem) as classes ricas, salvaguardar uma posição que não implique ser Governo, para não ser também “responsabilidade”, e degenerar numa confortável oposição permanente.

De modo que no dia 30 de Janeiro boa parte do eleitorado poderá exprimir o que sentiu do espectáculo de mau gosto entre os gladiadores internos do PSD (e ainda dos golpes palacianos do CDS), estilo a que, felizmente, a esquerda ainda se mantém relutante. Mas também poderá escrutinar a honestidade política do PS e o pântano em que ela se atolou. Por mais estranho que pareça, o eleitorado poderá sancionar o PCP e o BE, pelo seu tacticismo de retranca. E vale a pena observar que aquele dia poderá dar-nos a noção de que a democracia não só está ameaçada como se pode transformar numa versão paródica de si mesma, caso o Partido Chega chegue aonde quer chegar. Será o dia em que muitos eleitores, pessoas de uma classe social indeterminada (o que, ao menos isso, é um raro bom sinal de quase 50 anos de democracia), perceberão que a escolha que farão não é tanto entre a ideologia A e a B, mas entre duas faces (Rio e Costa) da mesma moeda, people pleasers, especialistas em tentar agradar às pessoas em qualquer circunstância e a troco da sua própria integridade. Convém não esquecer que ao escolher entre ambos – como parece que para tal estas eleições foram concebidas –, não se escolhe tanto com base no que neste momento estas duas figuras dizem que são, mas antes com base no que são capazes de se vir a tornar. Talvez seja isto que está em causa, se é que me entendem.

Para ser franco, votaria em quem fosse capaz de instituir um sistema educativo sem classes, gratuito e inteiramente estatal, facto que, dadas as circunstâncias e o regime vigente, é inegavelmente destituído de sentido. Boas Festas.

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