Glorificação do tempo ocupado

A visão da ocupação do tempo das crianças, de acordo com a lógica aditiva do quanto mais melhor, conduz a uma glorificação do tempo sobreocupado, na qual há pouco espaço para a perda de tempo, essencial para o desenvolvimento do ser.

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"Só o ser dá lugar ao demorar-se, porque está e permanece" FRANCISCO ROMAO PEREIRA/arquivo

A glorificação do tempo ocupado das crianças conhece atualmente o seu apogeu com o preenchimento das pausas letivas com a entrada da escola à distância pelas casas das famílias adentro, possibilitada pelas novas tecnologias. O próprio conceito de pausa letiva parece ter mudado, com as escolas a competirem entre si para preencherem um tempo das crianças que deveria ser, como a própria palavra indica, de paragem no tempo.

Não interessa que esses dias de pausa imprevista, motivada pela evolução da pandemia, sejam compensados, um por um, nas pausas letivas seguintes, trocados por dias de ensino presencial, de modo a garantir o cumprimento rigoroso dos dias previstos no calendário letivo. Nem tão pouco parece relevante que as crianças deixem praticamente de ter dias de descanso até ao final do ano escolar, com quase seis meses seguidos de aulas. Nada disto parece ter importância quando se trata de preencher o tempo dos mais novos, embora não seja tão claro como possa parecer o objetivo responsável por este tipo de opções.

Pode defender-se que, nas restantes pausas letivas marcadas regularmente no calendário escolar e no final dos dias escolares, os Ateliers de Tempos Livres (ATL) e as Atividades de Enriquecimento Curricular (AEC) representam uma componente significativa de apoio às famílias, que cumprem jornadas de trabalho difíceis de conjugar com as necessidades da vida familiar, o que também deveria ser objeto de reflexão, neste tempo em que as taxas de natalidade registam valores preocupantemente baixos.

Contudo, nas pausas letivas à distância, nem sequer se pode argumentar que aquilo que está em causa é o apoio às famílias, às quais, nessas circunstâncias, não resta alternativa senão permanecer em casa com os filhos, algumas delas tentando conciliar o melhor possível o inconciliável teletrabalho com a exigente guarda das crianças. E se assim é, será que a escola se deve sobrepor às famílias, indicando-lhes como devem ocupar os dias de que dispõem para estarem com os filhos, estreitando os laços de afeto e compensando a falta de tempo com que, muitas vezes, se debatem?

Estas interrogações tornam particularmente acutilante uma visão da educação que se foi alterando, gradual e subtilmente, até se ter tornado, com a questão das pausas letivas à distância, muito visível. Assim, à necessidade de manter as crianças ocupadas como forma de apoio às famílias, sobrepõe-se o ideal da glorificação da ocupação do tempo, que radica numa lógica aditiva do quanto mais melhor, de acordo com a qual a quantidade de atividades é diretamente proporcional às oportunidades de desenvolvimento de uma criança, colocando-a, supostamente, em vantagem perante outras que não tenham uma agenda tão preenchida.

Na realidade, aquilo que verdadeiramente está em causa com este conceito de sobreocupação do tempo é uma sobrevalorização do preenchimento do tempo dos mais novos com atividades organizadas, em detrimento do tempo livre, considerado, de acordo com esta lógica dominante, como uma pura perda de tempo. Nesta perspetiva, toda e qualquer pausa − seja ela entre os períodos letivos ou no final dos dias de aulas − representa uma falha que deve ser colmatada através do preenchimento compulsivo dos tempos livres, considerados inúteis, transformando-os em tempos ocupados, esses sim encarados como úteis.

Para uma reflexão sobre a (sobre)ocupação do tempo das crianças importa desmontar o conceito de utilidade por oposição ao de inutilidade, abordado por Nuccio Ordini no manifesto “A utilidade do inútil”, no qual reflete sobre a inutilidade do útil e a utilidade do inútil, salientando a importância da utilidade do inútil para o desenvolvimento do espírito e até para o progresso do mundo. Nas suas palavras, no nosso mundo “não é fácil compreender a utilidade do inútil e, sobretudo, a inutilidade do útil (quantos bens de consumo não necessários nos são vendidos como indispensáveis?)”. No entanto, “se não compreendermos a utilidade do inútil, ou a inutilidade do útil, não compreendemos a arte”. E um ser humano que não compreenda a arte “torna-se um escravo ou um autómato, transforma-se num ser sofredor, incapaz de rir e de sentir alegria”.

Esta visão utilitarista da ocupação do tempo das crianças é um reflexo daquilo a que o filósofo Byung-Chul Han chama a “crescente positivização da sociedade”, que assenta no imperativo do desempenho, valorizando a ocupação, a rapidez e a produção. A consequência desta valorização excessiva do fazer traduz-se numa carência do ser, uma vez que, de acordo com o citado filósofo, “o ser não se abre na atividade”, pelo que “a própria ação deve conter momentos de interrupção”. Segundo Heidegger, “demorar, perdurar, perpetuar-se é o antigo sentido da palavra ser. Só o ser dá lugar ao demorar-se, porque está e permanece. A época da pressa e da aceleração é, por isso, uma época de esquecimento do ser”.

Nesta linha, a eliminação dos tempos de paragem e de descanso, com a ocupação do tempo que deveria ser livre através de uma sucessão de atividades, deixa pouco espaço para o desenvolvimento do ser e elimina aquilo a que Byun-Chul Han chama a “comunidade de espreitadores”: “Com o desaparecimento do descanso, com a eliminação da paragem, com a suspensão do intervalo de tempo, perdem-se os dons do escutar espreitando e desaparece a comunidade dos espreitadores. O dom de escutar espreitando radica precisamente na capacidade de atenção profunda, contemplativa, à qual o ego hiperativo não tem acesso.”

E é exatamente neste ponto que o feitiço se vira contra o feiticeiro: de tanto promovermos a ocupação das crianças com uma panóplia de atividades diversas que se sucedem no tempo, sem as necessárias pausas e interrupções, poderemos estar a contribuir para a fragmentação da atenção infantil, que se torna superficial, errática, hiperativa e volátil, tão distante da atenção profunda, consistente, persistente e duradoura, que é essencial para a aprendizagem de novos conteúdos e para a consolidação dos conhecimentos.

Parece que, de tanto querermos cumular as crianças com tantas oportunidades, lhes poderemos estar a retirar o direito às paragens e ao descanso, fundamentais para aprenderem a ser, aprofundarem o seu mundo interior e estabilizarem a sua atenção.

E que tal se parássemos para pensar?


A autora escreve com o novo Acordo Ortográfico

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