As migrações em Portugal – o que somos e o que queremos?

A investigação tem revelado as tendências e anunciado possibilidades, mas não substitui as escolhas, que devem ser feitas pelos cidadãos e pelos seus representantes eleitos. A crise demográfica em que Portugal vive torna estas escolhas cruciais.

A investigação científica tem contribuído para um conhecimento aprofundado dos movimentos migratórios em Portugal, incluindo alguns dos seus principais impactos. Sabe-se muito – embora se deva ainda saber mais – sobre a emigração portuguesa, sobre o retorno dos portugueses, sobre a imigração de origem estrangeira, sobre os fluxos de refugiados, sobre movimentos como o de estudantes. Conhecem-se também muitos dos impactos destes movimentos, incluindo a relação com o mercado de trabalho, as consequências sobre o sistema de segurança social, a coesão social e a discriminação de base étnica e racial.

Curiosamente, Portugal tem sido um laboratório de muitos dos movimentos migratórios que todas as sociedades contemporâneas enfrentam. Mais do que se caracterizar simplesmente por ser um país de emigração ou de imigração, o país tem assistido a uma dinâmica e plasticidade muito intensas, que tornam difícil enquadrar o regime predominante. Por isso muito continua por estudar, tanto devido à complexidade dos movimentos do passado e actuais, como por força da rapidez das mudanças e da dificuldade da sua antecipação.

A imprevisibilidade dos fluxos tem sido forte. Olhando para as últimas décadas, os movimentos dominantes estiveram ligados a factores muito difíceis de prever. O recrudescimento da emigração em meados dos anos 80, na sequência da crise económica do início da década; o aumento da imigração da Europa de Leste, na sequência das alterações geopolíticas no continente; o forte crescimento da imigração brasileira no novo século, em parte ligado à maior dificuldade de acesso aos EUA depois de 2001; o novo aumento da emigração após 2011, depois de um novo resgate financeiro ao país – são exemplos de fluxos em larga medida inesperados.

Mais recentemente, a pandemia desencadeada pela covid-19 interrompeu a maior parte dos movimentos, gerando nova incerteza quanto ao futuro. É certo que alguns continuaram ou estão a intensificar-se, como a imigração sazonal para a agricultura e as entradas geradas pela retoma dos sectores do turismo e restauração. Também os fluxos de refugiados se mantiveram, devido ao carácter endémico dos conflitos de origem. Mas pouco se sabe sobre o que vai suceder no futuro.

Muitas mudanças irão ocorrer, algumas já anunciadas pelas tendências pré-pandemia. A limitação da livre circulação na União Europeia, provocada pelo “Brexit”, vai gerar uma diminuição da emigração. O Reino Unido era o principal destino das saídas portuguesas nos últimos anos – e os nossos emigrantes devem agora procurar alternativas. A imigração relacionada com o trabalho deverá manter-se ou aumentar, dada a segmentação do mercado de trabalho português – os postos de trabalho para imigrantes não são desejados pelos nacionais. A entrada de refugiados deverá continuar, dada a pressão mundial a esse nível e as políticas instaladas para o acolhimento.

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Os estrangeiros em Portugal alcançaram em 2020 o número mais elevado de sempre Pedro Cunha (arquivo)

Para além disso, as migrações futuras – tanto entradas como saídas – irão ser mais itinerantes e precárias, devido à flexibilização crescente das relações laborais e a múltiplas crises e contingências. Os movimentos vindouros irão incluir também cada vez mais transnacionalismo, com vidas divididas por mais do que um espaço geográfico, e mais contactos à distância, como se percebeu durante a pandemia.

A investigação tem revelado as tendências e anunciado possibilidades, mas não substitui as escolhas, que devem ser feitas pelos cidadãos e pelos seus representantes eleitos. A crise demográfica em que Portugal vive – a crise mais silenciosa, mas talvez a mais determinante para o futuro do país – torna estas escolhas cruciais.

O que Portugal pretende enquanto país? Devemos manter activas as múltiplas causas (económicas e outras) que têm levado gerações sucessivas de portugueses a procurar melhorar a sua vida no exterior? Devemos incentivar o seu regresso, utilizando os (escassos) dinheiros públicos para corrigir o que não foi antes prevenido? Devemos manter intactas as possibilidades existentes de imigração económica para estrangeiros? Devemos privilegiar as políticas de imigração reactivas, baseadas na regularização após a entrada (como tem sucedido), ou devemos criar mecanismos transparentes e estáveis de imigração legal? Devemos consolidar a norma de integração social que tem predominado, utilizando os fundos públicos na promoção da coesão e no combate à discriminação? Devemos incentivar a entrada de cidadãos europeus reformados e de investidores?

E como devemos lidar com os refugiados? Devemos adoptar uma política tímida de recepção, ou devemos ser mais generosos para quem foge de crises e de guerras? Devemos privilegiar uma política unilateral – condicionada pelo direito europeu e internacional – ou devemos empenhar-nos numa política multilateral, como se pretende com o Pacto Global para as Migrações Seguras, Ordeiras e Regulares, assinado pela maioria dos países das Nações Unidas em 2018?

Acreditamos que a ciência não se deve sobrepor à escolha política – como sugeriu Max Weber há cerca de 100 anos –, mas pode antecipar alguns dos aspectos positivos e negativos (expectáveis) das mudanças. Sendo assim, o que se pode sugerir para a regulação dos fluxos migratórios em Portugal? A emigração deve ser permitida – porque faz parte da liberdade humana; mas devem ser minoradas as suas causas estruturais, incluindo, entre outras, a segmentação do mercado de trabalho e a sua baixa intensidade tecnológica (que explicam muito do subemprego e da desqualificação dos jovens). Sempre que possível, deve ser incentivado o retorno dos nacionais. A imigração deve ser aceite e regulada. Devem ser criados novos canais legais, evitando alguns dos efeitos perversos quer da restrição excessiva, quer de uma abertura não controlada. Neste aspecto, é bom lembrar que a coexistência da emigração e da imigração pode ser um bem em si próprio – muitos dos países desenvolvidos, como o Reino Unido, fazem de múltiplas mobilidades o seu quotidiano. A entrada de população estrangeira deve ser acompanhada de medidas de integração – porque, como se sabe desde há muito, quando necessitamos de trabalhadores, são pessoas que entram.

Regressando a Weber, a ciência e a política são duas vocações separadas, que se regem por princípios e lógicas diversos. Mas todos os cidadãos devem estar informados pelo conhecimento científico e ser capazes de agir politicamente. Por isso, se a investigação não é um manifesto, tem a obrigação de divulgar informação que possa melhorar as decisões individuais e as políticas públicas.

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