Ómicron é mais leve? Vão ser tempos difíceis

Para boa compreensão, é bem mais honesto dizer “menos agressiva, mas muito mais transmissível” e, na minha opinião, isto são muito más notícias.

Além do que se fala nos cafés, ouvi Ricardo Araújo Pereira dizer algo como a Ómicron é levezinha e que tinha amigos infectados com sintomas ligeiros. Temos de distinguir entre a gravidade intrínseca (se não houvesse qualquer imunidade) e a gravidade observada (que mistura os vários tipos de imunidade). Não há margem para dúvida de que a Ómicron é cerca de três vezes mais transmissível (há estudos que apontam para mais, outros menos) e em termos de gravidade observada há estudos que apontam para uma ligeira diminuição na ordem dos 10-15% e outros na ordem dos 25-30%. Se nos recordarmos que a Delta é cerca de duas vezes mais grave que a Alfa ou que a estirpe ancestral, percebemos que a Ómicron é muito mais grave do que estas duas estirpes. Logo “mais leve” não quer dizer “leve”. Daí que para boa compreensão é bem mais honesto dizer “menos agressiva, mas muito mais transmissível” e, na minha opinião, isto são muito más notícias.

Vejam isto apenas como uma previsão e que do fundo do coração espero estar completamente errado. Tal como disse há uns dias, temos a conjugação perfeita para uma tempestade preocupante:

  1. A época de festas com o maior ajuntamento de pessoas indoor do ano;
  2. Eleições legislativas, onde a demagogia vai matar mais do que qualquer doença;
  3. A variante Ómicron que é uma enorme preocupação, apesar de algumas incertezas.

Não me parece que em algum momento da pandemia tenhamos tido um aumento como o que aconteceu na semana passada, em que, da ordem dos 5 mil casos, passamos para os mais de 10 mil. Isto é preocupante, eu diria mesmo, angustiante. Já o disse umas centenas de vezes: o que interessa é o que se passa ao nível dos internamentos gerais e nas unidades de cuidados intensivos (UCI), e aí está tudo “controlado”, ou, se quiserem a minha tal previsão, ainda está tudo controlado. Esta semana vamos ver o reflexo nos hospitais dos 12 mil a 13 mil casos/dia da semana passada e, a ser verdade que chegaremos aos 30 mil casos/dia (previsões da DGS), teremos um mês de Janeiro muito complicado.

  1. O período de incubação, entre o contacto de contágio e o início de sintomas, é de um a 14 dias. Sendo a média de 5-6 dias. Admite-se que com a Ómicron este período possa ser mais rápido;
  2. Os casos positivos são considerados contagiantes em potencial nas 48 horas que precedem o início dos sintomas. E ainda temos os assintomáticos e os paucissintomáticos que podem transmitir;
  3. O período entre o início dos sintomas e o internamento anda entre os três e os dez dias;
  4. Os internamentos em enfermarias gerais têm uma média de 8-9 dias, seja o desfecho alta ou óbito;
  5. O tempo entre o internamento geral e a passagem para a UCI é de 2-3 dias e o tempo médio de internamento é de 19 dias (varia muito dependendo dos estudos, mas é muito longo);
  6. Os profissionais de saúde também se infectam e, embora por norma tenham mais cuidados, vai haver um absentismo à proporção do que se passar na comunidade.

O que eu estou a tentar explicar com estes dados é que quando há uma grande subida de casos na comunidade, como o de agora, demora muito, muito tempo para que se quebrem as cadeias de transmissão, porque os tempos de incubação podem ser longos, porque as pessoas por vezes com um teste negativo acham que já vale tudo e (infelizmente) não é bem assim. E também para que percebam que, desde que nos apercebemos de que há uma enorme subida de casos na comunidade até que estes se venham a sentir nos hospitais, há um hiato temporal enormíssimo, que nos dá a sensação de que está tudo bem (que é o que estamos a viver agora), quando no fundo está tudo mal e a piorar exponencialmente.

Percebam ainda que a teoria estapafúrdia dos negacionistas de que os médicos andam a desprezar os doentes não-covid porque lhes “apetece” é absolutamente ignorante e contraproducente para a compreensão do desafio. Primeiro, porque os profissionais de saúde tratam pessoas, não tratam doenças, e, depois, porque, desde os centros de saúde, que têm de seguir os doentes que estão a agravar em casa e seus familiares (há vários relatos de que a SNS24 já não está a dar resposta), aos serviços de urgência que têm de dividir tudo em covid (potencial) e não-covid, para que não se contaminem doentes, até às enfermarias gerais que chegando à sua capacidade limite vão ter de roubar espaço e (mais difícil) profissionais de saúde (já há hospitais a fazê-lo), até às UCI que fazem das tripas coração para aumentar a sua capacidade de resposta, ao pôr ventiladores onde não há condições para tal e, por inerência, “pedir emprestados” profissionais, por norma auxiliares, enfermeiros e médicos anestesistas, ao bloco operatório... Tudo isto tem implicações brutais no normal funcionamento dos hospitais, o que torna impossível que não se prejudiquem os utentes, que somos todos nós.

O aumento da testagem é fulcral, mas tem dois inconvenientes: a falsa segurança, quer porque há uma percentagem razoável de falsos negativos (testes que deram negativos, quando a pessoa já estava positiva), quer porque há muitas pessoas a testar positivo nos autotestes e a guardar essa informação para si, gerindo com mais ou menos consciência cívica o risco de contágio. Não tenho dúvidas de que os números estão francamente subvalorizados também por esse motivo. Já para não falar em testes falsos e certificados falsos que por aí circulam.

Onde estamos a falhar? E o que podemos melhorar? No básico. Onde nós falhamos é naquilo que já toda a gente sabe ou soube, mas não cumpre:

  1. Se tiver sintomas, teste. E, em caso de dúvida, não se junte ​com outros. Mesmo com PCR, já vi doentes críticos que só o terceiro teste foi positivo, quando pela TAC era óbvio que tinham covid;
  2. Cumpram as quarentenas! Eu sei que é terrível, mas é a pedra basilar deste desafio. Seja porque estão positivos, seja porque estão em isolamento profiláctico, não saiam de casa durante o tempo predeterminado;
  3. Máscaras. Usar sempre em espaços fechados e com o nariz e boca bem tapados;
  4. Mãos, etiqueta respiratória, distanciamento, ventilação, etc. Ainda são estas medidas básicas que mais fazem diferença;
  5. Tomem a terceira dose, mal possam;
  6. Resistam a tudo o que seja demagogia e aos vendedores de banha da cobra, que dizem que reforçam o sistema imunitário com água dos Himalaias ou sei lá o quê. Estilo de vida saudável faz bem a tudo, mas é só isso, não salva ninguém de ficar gravemente doente com covid.

Em momento de eleições, sejam quais forem as vossas tendências políticas, não permitam que quem fala ou falará por vocês seja um negacionista ou um relativista demagogo. Porque todos sabemos que é fácil criticar medidas que nos entristecem, mas, se querem mais liberdade, que assumam em voz alta que não se importam que morram mais pessoas e que destruam a energia que resta dos profissionais de saúde, que lá estão para todos nós.

Por último, e não menos importante. Justiça, equilíbrio, partilha de responsabilidades e cidadania. Pensem comigo: porque é que faz sentido fechar bares e discotecas e mais restrições para restaurantes, cultura, feirantes e tantas outras áreas? Para que não morra tanta gente e para que os hospitais não entrem em colapso. Então se são medidas para o nosso benefício colectivo enquanto sociedade, porque é que só os empresários e trabalhadores destas áreas é que saem lesados economicamente? Se somos nós enquanto sociedade que lhes estamos a “exigir” que fechem temporariamente, porque é que não há impostos extraordinários sobre os que não foram afectados com estas limitações, para proteger os que estão a passar muito mal, alguns até a passar fome, para proteger a saúde de todos? Faria ou não sentido que assim fosse? Eu acho que sim, mas, se me explicarem que estou errado, mudarei de opinião.

Quem está pela saúde não está contra a economia! Quem está pela saúde não está contra as liberdades! Quem está pela saúde não está contra a diversão! Quem está pela saúde não está contra a educação! Quem está pela saúde não está contra a cultura! Quem está pelas vidas não desvaloriza a saúde mental!

Mas, se não cuidarem de nós, nós não conseguimos cuidar de ninguém. Os dilemas éticos são mais do que muitos e só sairemos desta com poucas cicatrizes se funcionarmos em grupo.

Vão ser tempos muito difíceis. Mas todos juntos o inimigo torna-se mais acessível. Todos por todos. Humanidade de grupo.


Artigo corrigido dia 13/01/2022, às 16h: A frase atribuída a Ricardo Araújo Pereira que aparecia como citação no início do texto não estava correcta. O humorista no programa Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer, de dia 24/12/2021 usou expressões como “esta é para meninos!”, “esta é muito mais suave”, para se referir à variante Ómicron. As minhas desculpas ao visado.

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