A idade da inocência

É quando perdemos a inocência que os julgamentos começam. E nunca vi ninguém sair ileso de um julgamento. Até quando aparentemente o ganha.

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"Não é mais simples gostar e agregar do que passar a vida a apontar o dedo?" Mag Rodrigues

Clara tem seis anos. Saiu do quarto em direcção a mim com um desenho: “Inês, é para ti!”. Agradeci. Analisámos as cores e uns pequenos adereços que foram ali colocados para adornar a pequena obra. Confiante, Clara não anuiu quando lhe disse que também um pouco de dourado podia ser acrescentado. Foi arrogância minha por achar que tendo deixado de temer o dourado, agora Clara também tinha de gostar do mesmo. Nem pensar.

Clara é bem-educada. Trata-nos pelo nome. Não sei se já se aperceberam do que isso representa quando o outro tem a atenção de nos tratar pelo nome. É um cuidado muito subtil mas que dá corpo a qualquer coisa como se iniciasse ingenuamente uma amizade. Lembro-me de sermos crianças e perguntarmos uns aos outros: “como te chamas?” e haver nisso uma vontade maior de começar qualquer coisa.

Clara volta para o seu quarto. Tem mais desenhos para fazer. Eu fico a pensar nos adultos que não nos tratam pelo nome ou evitam que o seu olhar se cruze com o nosso.

Há uns anos conheci um homem cheio de passado que veio ao encontro do meu presente. Sempre lhe conheci um sorriso doce que mantém e alarga consoante as circunstâncias, mas na dúvida, sorri.

Eu e ele, por termos vidas tão diferentes, avançámos e recuámos muitas vezes na forma como nos aproximámos. Aparentemente não havia caminho para andar e nenhum de nós pressionou o outro, coisa que lembramos até hoje.

Um dia, o homem cheio de passado disse-me presente e começámos a viver juntos. É o avô da Clara.

Os miúdos são muitas vezes uma arma de arremesso no meio de tudo o que os adultos não conseguem digerir. Ou não querem. Porque justamente por sermos adultos devemos saber que não há lados bons ou maus: há ângulos que nos fazem ver a vida de diferentes maneiras, mas o último olhar deve ser este: todos temos direito a procurar a felicidade: um direito inalienável.

São curiosas as famílias ou os amigos que se posicionam de um lado ou de outro quando todos podemos viver em harmonia com ambos. Não será por isso que somos adultos?

As pessoas comportam-se surpreendentemente como crianças (menos crescidas do que Clara) quando sistematicamente negam ao outro a possibilidade de ser feliz, e, pior, sentem-se na obrigação de ficar de um dos lados. Lamento se vos vou dizer algo que não sabem: não há lados. Há vidas. Há escolhas quando as podemos ter. A saúde não é uma garantia (infelizmente) para ninguém. O trabalho que parecia o de uma vida, pode acabar de um dia para o outro. O mundo tornou-se o lugar mais instável para habitar. Por que razão temos de dar o amor como garantido? Nem os nossos filhos – que, aparentemente com propriedade, chamamos ‘nossos’, um dia vão estar longe de nós a seguir a sua vida sem capacidade para absorver a nossa. Não, lamento, nada é garantido, mas é legítimo que cada um procure a sua felicidade nem que seja já tarde, quando o tempo parecia já não estar do nosso lado.

A dada altura vivemos vidas em simultâneo e por vezes chega o dia em que sem o pré-aviso colado na porta, alguém nos toca à campainha para dizer: “acabou”. E nós arrumamo-nos, pegamos no que momentaneamente resta de nós e passamos dias para nos reconstruirmos mas chegamos lá. Chegamos quando queremos. E voltamos a tentar a felicidade se virmos nisso um objectivo a perseguir. Temos de dar um tempo à família e aos amigos para que também eles, na sua solidariedade, possam dar voz à incompreensão, mas depois, crescidos que somos, agregamos e não discriminamos. A nova mulher do pai não é uma megera só porque o levou. O novo namorado da mãe não é um infame só porque a apresenta agora a novos amigos e trouxe um filho com ele. As pessoas crescem e amadurecem para amar o próximo. Para o acolherem. Para ouvirem as suas razões. E se errarmos, sim, e se errarmos, os amigos e a família também lá estarão para nos ouvir. Por isso é que formamos uma equipa e não lhes chamamos adversários.

Não é mais simples gostar e agregar do que passar a vida a apontar o dedo?

Clara fez-me o desenho que eu trouxe intacto para casa. Um dia perguntou-me do fundo dos seus olhos claros: “quem é mais velho, tu ou o avô?”.

É quando perdemos a inocência que os julgamentos começam. E nunca vi ninguém sair ileso de um julgamento. Até quando aparentemente o ganha.

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