Sepultura mostra que, há dez mil anos, já se chorava a morte de um bebé em comunidade

Foi localizada em Itália e, no que toca a crianças, é a mais antiga da Europa. Para os cientistas, esta sepultura mostra como os caçadores-recolectores já davam valor a uma menina praticamente acabada de nascer, homenageando-a na morte como homenageariam qualquer adulto.

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A gruta de Arma Veirana, onde foi identificada esta sepultura, começou a ser usada há mais de 50 mil anos Europa Press

O pequeno corpo foi disposto numa sepultura dentro de uma gruta nas montanhas que hoje fazem parte da região da Ligúria, no noroeste de Itália. Pertenceu a uma menina que morreu quando tinha um mês e meio e a comunidade de caçadores-recolectores em que nasceu, há dez mil anos, quis honrá-la cobrindo-a de meadas de conchas perfuradas, como se de um longo colar se tratasse.

Conhecem-se poucas sepulturas do mesolítico (período de transição entre o paleolítico e o neolítico) e ainda menos pertencentes a crianças, repletas de ornamentos e passíveis de serem bem documentadas. Encontrar uma nestas condições, com a possibilidade de reunir até dados de ADN, é, por isso, motivo de entusiasmo para os cientistas que estudam a evolução humana.

As descobertas da equipa multidisciplinar que estudou os restos mortais desta menina pré-histórica a que os cientistas chamaram Neve foram agora publicados no Scientific Reports, um jornal online que pertence à galáxia da Nature e que cobre todas as áreas das ciências naturais (An infant burial from Arma Veirana in northwestern Italy provides insights into funerary practices and female personhood in early Mesolithic Europe saiu a 14 de Dezembro).

É comum os arqueólogos e antropólogos dizerem que uma sepultura e todos os rituais que estão associados às práticas funerárias são como uma janela para determinada comunidade, para a forma como vivia, para a importância que dava ao indivíduo ou para as suas crenças. E, se assim é, a sepultura agora estudada mostra que, há dez mil anos, os homens que viviam nestas montanhas consideravam que uma quase recém-nascida era um ser pleno de direitos e que, por isso, ao morrer, merecia que a comunidade a homenageasse como homenagearia qualquer adulto.

A evolução e o desenvolvimento da forma como os primeiros humanos enterraram os seus mortos, tal como tem vindo a ser demonstrado pela arqueologia, possui um enorme significado cultural”, defende Jamie Hodgkins, paleoantropóloga e co-autora do artigo publicado no Scientific Reports aqui citada a partir de um comunicado da Universidade do Arizona, a que pertence.

E o mesolítico, sublinha por seu lado o colega Caley Orr, também paleoantropólogo e especialista em anatomia da Escola de Medicina da Universidade do Colorado, é particularmente interessante: “Veio logo a seguir à última Idade do Gelo e representa o derradeiro período na Europa em que a caça e a recolha de alimentos na natureza eram as principais formas de subsistência. Portanto, é um período muito importante para a compreensão da pré-história humana.”

Contas de colar e a garra de um bufo real

A equipa de investigação, que é composta por investigadores das universidades de Bolonha, Génova, Arizona, Washington, Montreal, Ferrara e Tubinga, começou a monitorizar a gruta de Arma Veirana em 2015 e descobriu os restos mortais em 2017, na última semana de escavações desse ano.

Nas campanhas anteriores, os arqueólogos tinham já identificado artefactos típicos do homem de Neandertal, o que significa, neste caso, que aquela gruta começou a servir de abrigo há mais de 50 mil anos.

Foi uma conta de concha que despertou a equipa para a forte possibilidade de a gruta ter sido usada, também, para uma ou mais sepulturas. Poucos dias depois de terem encontrado a conta, um dos arqueólogos deu com um fragmento de osso que lhes pareceu estranho e que, mais tarde, viriam a concluir pertencer ao crânio de um indivíduo muito novo.

Identificada a sepultura, a equipa passou os últimos dias da campanha de 2017 e toda a de 2018 a trabalhar para expor cuidadosamente todo o esqueleto da pequena Neve (tem o mesmo nome de um rio que passa nas imediações).

Depois de terem todo o esqueleto visível e terem fotografado ao pormenor o contexto do enterramento, os cientistas de diversas áreas e centros de investigação começaram a fazer uma extensa bateria de análises para reunir informação. O radiocarbono mostrou, então, que a criança ali sepultada viveu há dez mil anos e o ADN revelou que se tratava de uma menina que pertenceu a uma linhagem de mulheres europeias a que se convencionou chamar U5b2b.

Chegaram, também, à conclusão de que terá morrido entre 40 a 50 dias depois do nascimento e que, ainda no útero, viu o crescimento dos seus dentes afectado por alguma situação de stress a que a sua mãe foi sujeita.

O estudo dos ornamentos que cobriam o esqueleto - 60 conchas perfuradas, quatro pendentes e uma garra de bufo real, entre outros - feito por Claudine Gravel-Miguel, investigadora do Instituto das Origens Humanas da Universidade do Arizona, dá a entender que houve grande cuidado nos rituais funerários que envolveram esta bebé.

As contas de colar em concha, por exemplo, foram muito trabalhadas e apresentam marcas de uso, o que pode significar que pertenceram a membros da comunidade que, assim, quiseram honrar a menina que acabavam de perder.

“O achado permite indagar sobre um rito funerário excepcional da primeira fase do mesolítico”, explicou ao diário espanhol El País Stefano Benazzi, professor do Departamento de Bens Culturais da Universidade de Bolonha. “Compreender como os nossos antepassados lidaram com os seus mortos tem um enorme significado cultural e permite-nos conhecer melhor o seu comportamento e a forma como pensavam.”

Na introdução do artigo que assina no Scientific Reports, a equipa defende que, sendo do mesolítico, algo “extremamente raro”, a sepultura escavada na gruta de Arma Veirana pode ajudar a explicar como “a idade e o sexo/género influenciaram a construção da personalidade nas sociedades pré-históricas de caçadores-recolectores”, algo muito importante, sobretudo porque a informação disponível sobre esta matéria é diminuta.

“Etnograficamente, muitas culturas atrasaram a atribuição de personalidade a crianças pequenas, mantendo-as num estado liminar de humanidade”, escreve o grupo de investigadores liderado por Jamie Hodgkins, garantindo que a forma como o ritual funerário infantil era conduzido nos diz, de certa forma, quem era considerado uma pessoa plena de direitos nestas sociedades pré-históricas.

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