As insuficiências dos outros ou o poder da vulnerabilidade

Que raio de sociedade é esta em que temos de estar sempre bem? Em que é necessário transmitir constantemente esta imagem de ser um super-homem ou uma super-mulher? Em que não conseguimos perceber que “jogar em equipa” é ajudarmo-nos uns aos outros, para que um colectivo seja mais do que a soma das partes.

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Loïc Fürhoff/Unsplash

No outro dia, enquanto assistia a um jogo de basquetebol de um dos meus filhos, ouvi um pai comentar o seguinte: “Para mim é muito importante que ele esteja num desporto de equipa, assim aprende a lidar com as insuficiências dos outros”. Fiquei espantado com esta afirmação. Rapidamente, o senhor, apercebendo-se do meu olhar incrédulo, remendou a sua lógica dizendo: “E também com as dele próprio, claro.”

Sou psiquiatra de profissão, todos os dias lido com pessoas cujas doenças os fazem sentir-se inferiorizados, inseguros e, provavelmente, “insuficientes”. Imagina como se sentirão quando precisam de pedir ajuda ou quando, simplesmente, querem desabafar com alguém sobre estarem a passar por algo, tão comum, como uma depressão ou uma perturbação de ansiedade. A maioria não fala disso com ninguém. Tem medo de ser apelidado de “fraco”, “maluco” ou… “insuficiente”. Muitas vezes este medo, que infelizmente tem razões para existir, faz com que as pessoas não recorram ou adiem a ajuda que precisam para os seus problemas, levando a que a situação se vá agravando e as consequências, muitas vezes sérias, se vão acumulando.

Que raio de sociedade é esta em que temos de estar sempre bem? Em que é necessário transmitir constantemente esta imagem de ser um super-homem ou uma super-mulher? Em que não conseguimos perceber que “jogar em equipa” é ajudarmo-nos uns aos outros, para que um colectivo seja mais do que a soma das partes.

É que, lamento informar, todos somos apenas humanos. Cada um com as suas “insuficiências” e com os seus pontos fortes, cada um com os seus contextos, com as suas vulnerabilidades e com a sua resiliência. Esta ideia de que temos todos de ser “os melhores”, que temos de estar sempre bem, que não se pode mostrar fraqueza, é uma coisa horrível, limitadora, quadrada… e faz muito mal à nossa saúde mental.

Toda a investigação em Psiquiatria e Psicologia nos diz que quanto mais nos conhecermos, quanto mais noção tivermos das nossas imperfeições e vulnerabilidades, maior será a nossa capacidade de lidar com as adversidades. Ou seja, quanto mais aceitarmos que somos vulneráveis, ou “insuficientes”, mais fortes ficaremos.

Com a situação pandémica começou a falar-se mais sobre saúde e doença mental - e ainda bem. Mas, na realidade, os preconceitos e o estigma estão muitíssimo enraizados. Um em cada quatro de nós irá ter uma doença mental, na sua maioria depressão ou ansiedade, isto é um facto. Como é que este filho, se um dia sucumbir a uma destas patologias, se poderá sentir à vontade para falar disso? Como poderá ser um “jogador de equipa” e ajudar outro que esteja a passar por estes problemas? Afinal, isso é “uma insuficiência”, “não há nada a fazer”.

Totalmente errado. Há imenso a fazer relativamente à nossa saúde mental, à nossa forma de gerir emoções e stress, à forma como demonstramos empatia com o outro e, sobretudo, na forma como nos tratamos a nós mesmos. Há imensas formas de promover a saúde mental, de prevenir e tratar a doença mental.

Mas se continuarmos a achar que “está sempre tudo bem” e que se não for assim é “insuficiente”, não iremos chegar a lado nenhum. E milhões de pessoas, crianças, jovens, adultos e idosos, irão continuar a sofrer de descriminação e estigma.

Mas vamos a um exemplo prático de “insuficiência”: Kevin Love é um jogador de basquetebol norte-americano. Joga na NBA, ganhou campeonatos e medalhas de ouro olímpicas. Um verdadeiro “super-homem”, se calhar admirado por esta criança e por este pai. Só que não. É simplesmente uma pessoa normal, com “insuficiências”. Em 2018, veio a público falar da sua luta com depressão e ansiedade, tornando-se um verdadeiro campeão na liga da consciencialização das questões de saúde mental. Desde aí, inúmeros atletas profissionais têm falado destes temas de forma mais aberta.

Espero, sinceramente, que aos poucos isto também se vá passando em Portugal e que mais figuras públicas ajudem a desmistificar estas questões. Talvez nos possamos sentir “suficientes” com as nossas “insuficiências”, e assim podermos lidar com elas e evoluir. Individualmente e em equipa.

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