O Parlamento, o Governo e o nosso dia-a-dia

Sobre a qualificação de escolhas eleitorais num contexto democrático e multilateral.

Penso que, num regime democrático como o que actualmente existe em Portugal, por um lado, é negativo tentar legitimar opções ideológico-políticas apresentando-as como imperativos indiscutíveis da religião e/ou da ciência (posturas providencialista e/ou cientista). Por outro lado, é positivo procurar aperfeiçoar as nossas opções — pessoais, profissionais e cívicas — tendo livre e criticamente em conta o plural conhecimento disponibilizado a partir das humanidades e das ciências, das artes e das tecnologias de matriz científica. A operatividade desta abordagem será acrescida se reconhecermos que os nossos percursos individuais são condicionados (mas não determinados), simultaneamente, por fenómenos passados, presentes e futuros; pelas escalas local/regional, nacional/da União Europeia e global.

Em coerência com os pressupostos que acabo de referir, apresento, de forma pretendidamente objectivante, uma breve caracterização de algumas das muitas questões que poderão ser consideradas quando se aproximam as eleições legislativas do dia 30 de Janeiro de 2022. Chamo a atenção para os riscos — para a nossa democracia e para as nossas vidas — de candidatos, mediadores e eleitores eventualmente substituírem a apreciação racionalizada de problemáticas complexas e estruturais por polémicas acaloradas sobre questões simples e superficiais.

Diria que, consciente ou inconscientemente, activa ou passivamente, escolheremos entre pessoas, propostas e práticas que defenderão um maior ou menor aprofundamento da nossa democracia ou, em alternativa, a evolução no sentido de um regime populista e/ou ditatorial. Optaremos, ainda, por quem defende a existência de organizações internacionais multilaterais e de processos de integração subcontinental de cariz democrático ou, em, alternativa, o regresso à hegemonia do unilateralismo de grandes e médias potências (muitas das quais com regimes ditatoriais).

Também escolheremos entre defensores de governações das vertentes económicas e sociais da nossa vida colectiva a partir de concepções mais ou menos keynesianas e promotoras de uma globalização negociada; mais ou menos monetaristas e fomentadoras de uma globalização desregulada; mais ou menos colectivistas e nacionalistas; mais ou menos neocorporativistas e nacionalistas. Saliento aqui que, sob a forma dos “Estados-Providência”, a corrente keynesiana (liberal clássica) tem assegurado, pelo menos desde o final dos anos 1940, nos países capitalistas centrais e semiperiféricos, uma evolução assinalável em termos de crescimento económico e de melhoria das condições de trabalho/de vida, de desenvolvimento integrado — nos planos social e regional — e de prevenção ou de atenuação de situações de crise (económico-financeira, sociocultural e político-diplomática).

Lembro, ainda, que tanto a abordagem marginalista e nacionalista como a escola monetarista — liberais neoclássicas — são associáveis, quer à “Crise de 1929”/à “Grande Depressão” e à “Crise de 2008”/à “Crise das Dívidas Soberanas”, quer ao aumento das desigualdades, da precariedade social global e da radicalização político-ideológica. Por norma ligadas a ditaduras autoritárias ou totalitárias, as soluções colectivistas e nacionalistas ou neocorporativistas e nacionalistas têm acarretado bloqueios ao desenvolvimento e crises económico-financeiras e sociais — por vezes, mesmo, modalidades de violência de massas e processos genocidários.

Optaremos, igualmente, entre diversas formas de encarar fenómenos socioculturais estruturantes como são a inevitável multiculturalidade das sociedades humanas e a problemática das identidades histórico-culturais, o racismo e a xenofobia, o darwinismo social e as desigualdades de género, a progressiva rarefação da ocupação humana de determinadas regiões e o binómio recessão demográfica/fluxos migratórios. Destaco, a este propósito, as implicações, em termos de sofrimento humano e de bloqueios ao desenvolvimento, das posturas que, à extrema-direita e à extrema-esquerda, tendem apresentar estes processos — na realidade complexos e multifacetados — como um inevitável e permanente, simples e maniqueísta conflito entre “o bem e o mal”.

Não poderemos, também, deixar de fazer escolhas sobre as decisivas problemáticas dos equilíbrios ambientais, dos recursos naturais escassos e não renováveis, do correlacionamento entre modernização tecnológica (automação, digitalização, inteligência artificial) e acesso a rendimentos condignos/a autonomia social por parte da população em geral. Para além de saber se atingiremos as metas quantitativas e qualitativas que forem sendo estabelecidas em Portugal, na União Europeia e a nível mundial, trata-se de decidir se haverá — e com que dimensão — compensações e/ou apoios à reconversão dos mais negativamente afectados pelas mudanças introduzidas.

Continuaremos, igualmente, a poder optar, face a temáticas de natureza transversal, o que queremos para o nosso país: quanto aos graus de corrupção e de abuso de poder; de nepotismo e de elitismo não meritocrático; de flexibilidade pragmática ou de rigidez mais ou menos ancorada em valores ideológicos ou em interesses socioeconómicos; de estruturação do aparelho de Estado sobretudo como prestador de serviços aos cidadãos ou, também, às empresas e a outras organizações; de centralismo ou de descentralização. Saliento, para além das implicações legais e éticas, a relevância destes factores enquanto condicionalismos potenciadores ou limitadores da nossa competitividade e do nosso nível de coesão como país (sistema político, aparelho de Estado e sociedade civil).

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