Portugal e a Papua Nova Guiné

Foi com estupefacção que muitos cidadãos tentaram encontrar, sem êxito, razões ponderosas para o chumbo do OE e consequente, mas não necessária, queda do Governo.

Continua por explicar cabalmente a razão que terá levado o centro esquerda/esquerda a uma rotura no momento de aprovação do Orçamento de Estado (OE), em particular como explicar que tal tenha ocorrido logo na primeira fase de discussão do mesmo.

Parecia tão improvável a possibilidade de repetir-se o triste episódio que permitiu a esquerda abrir as portas à entrada da troika em Portugal que o PS esticou ao máximo a corda com que se digladiava com o PCP, depois de ter fechado com estrondo a porta a Rui Rio e de ter descartado a hipótese de entendimento com o BE.

Num momento crítico para um país ainda convalescente mas não curado duma enorme crise sanitária, com milhares de empresas depauperadas, a situação aconselhava à valorização dos consensos e não à ampliação das divergências.

A necessidade de executar com celeridade os programas do PRR, visto os prazos de execução serem curtos, aconselhava também a classe política a deixar por momentos de olhar para o umbigo e passar a concentra-se nas opções do grande investimento a ser feito nos tempos mais próximos, pressionando para que investimentos estratégicos capazes de produzir riqueza fossem tratados com competência e rigor. Nada disso encontramos nas razões apresentadas para justificar o chumbo do OE.

Foi portanto com estupefacção que muitos cidadãos tentaram encontrar, sem êxito, razões ponderosas para o chumbo do OE e consequente, mas não necessária, queda do Governo.

Ventos de insanidade chegou a ser a explicação dada ao fenómeno. Numa tentativa de encontrar uma explicação para a insensata atitude dos dirigentes políticos, Boaventura Sousa Santos publicou no PÚBLICO o artigo A cismogénese e a sensatez política, em que cita um estudo sociológico de Gregory Bateson resultante de observações feitas nos anos 30 do século passado, na Papua Nova Guiné. Com efeito o antropólogo inglês autor de Naven explica na obra Mind and Nature o que sucede a dois antagonistas da tribo Iatmul que vão subindo na agressividade cada vez que o outro aumenta a sua postura ameaçadora; o comportamento simétrico, ou complementar - cismogénese, com uma evolução descontrolada é comparado com o sistema de regulação de uma máquina a vapor: o aumento de velocidade exige mais vapor que por sua vez vai provocar o aumento da velocidade, e sem um controlador a máquina acaba por destruir-se. O regulador de Watt permite limitar a pressão de uma caldeira em função da velocidade da máquina, impedindo assim a sua destruição.

Numa democracia o regulador da actividade política é o voto popular, de quatro em quatro anos, que permite controlar a actividade dos governos, nomeadamente pela alteração da sua composição, premiando ou penalizando a sua actuação.

Com a aceleração das conquistas tecnológicas muitas transformações ocorrem nesse período de forma tão rápida que a super-estrutura do Estado não se consegue adaptar.

Era justamente aqui que os partidos poderiam contribuir positivamente, se mantivessem permanentemente uma actuação de avaliação da situação, discutindo e apontando internamente novas soluções, permitindo a detecção precoce de novos problemas, mas também de novas oportunidades de progresso social. Teríamos assim um regulador mais fino da coisa pública; afinal, o que se passa dentro dos partidos?

No pós-25 de Abril a política feita por convicção e ideal foi sendo progressivamente substituída pela política calculista que permita navegar nas correntes dominantes, condição essencial para conseguir um bom lugar numa lista ou a colocação num qualquer organismo do Estado. A discussão de ideias, projectos ou simples opiniões foi sendo esbatida pela necessidade de evitar ser incómodo. Criaram-se bancos de favores e o debate interno, frequente e abrangente, foi substituído por reuniões onde os dirigentes falam muito mas ouvem pouco.

Justamente quando era necessário trazer para a esfera da política as novas dinâmicas sociais, os partidos perdem capacidade de aproximação da sua base social e tornam-se santuários de celebrações litúrgicas onde os celebrantes são apenas os seus dirigentes.

Ao serem mais ouvintes do que interlocutores, os militantes passaram a ser informados pelos dirigentes sobre as suas própria soluções para a resolução dos problemas dos militantes; ora, como diz Descartes, “poderia encontrar mais verdades nas lucubrações que cada um fazia sobre os assuntos que lhe interessam… que aquelas que um homem de letras realiza no seu gabinete”.

Este desvio da política partidária em relação aos seus objectivos primordiais - afirmação e defesa de um ideário com valor social - resultará provavelmente em grande parte da filtragem permanente na elaboração das listas de candidatura interna e externa, e assim se foi gerando o menor múltiplo comum do pensamento partidário, que obviamente é muito menor do que o defendido pelos militantes ou simpatizantes mais avançados.

Foi provavelmente por isso que nas últimas eleições no PSD vimos os militantes de numerosas concelhias e distritais manifestarem o seu apoio ao candidato que se opunha às preferências da máquina partidária local. Foi também este afastamento das bases que terá levado PS, PCP e BE a serem arrastados para atitudes que provavelmente não tomariam, se as tivessem partilhado com um bom número dos seus militantes.

Esta situação está cada vez mais a distanciar os eleitores dos eleitos, contribuindo para uma abstenção que já é o maior “eleitor” do país.

Num momento em que devíamos estar a procurar informação credível que apoiasse grandes opções para o desenvolvimento do país (hidrogénio verde, combustíveis sintéticos, extracção e utilização do lítio, investimento numa economia do mar…), a pobreza dos títulos de caixa alta reflecte a indigência da política e o declínio da vitalidade democrática.

O problema está na estrutura dos partidos, na qualidade dos seus quadros e na possibilidade de grupos ou facções dominantes se sobreporem às expectativas e sensibilidades das bases. Essa diversidade essencial é em si mesma uma garantia de regulação interna, um poderoso mecanismo de equilíbrio e estabilidade capaz de gerar novas sínteses que correspondam às necessidades do país e às preocupações do eleitorado.

A qualidade dos eleitos tem de ser uma preocupação; mesmo dentro dos maiores partidos apenas uns poucos milhares de eleitores vão decidir qual a proposta eleitoral a oferecer a milhões de eleitores.

Isto passará por uma muito maior exigência sobre o currículo dos candidatos a lugares de eleição: o que fizeram para lhes entregarmos as rédeas do poder? Onde demonstraram ser competentes, não como tribunos, pois isso será avaliado pelos eleitores, mas como profissionais com conhecimento reconhecido? O que fizeram de socialmente útil para que se lhes entregarmos a chefia da coisa pública? Apresentou e defendeu ideias próprias ou foi um mero seguidor de correntes dominantes?

Se continuarmos a privilegiar a política dos bancos de favores e a dos vencedores das tais disputas tribais sem a intervenção permanente e reguladora da sociedade, arriscamo-nos a caminhar no sentido inverso ao da já longínqua tribo da Papua Nova Guiné dos anos trinta.

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