A verdade da história do Café Martinho da Arcada: a polémica – IV

A despedida da APAMA foi simbolicamente a edição de um livro de temática pessoana, fortemente marcado pela solidariedade e pela generosidade dos intervenientes.

Passo e fico, como o universo.
Fernando Pessoa/Alberto Caeiro

Exige este último artigo sobre a história do café Martinho da Arcada, entre 1984 e 1992, que se aborde com algum pormenor o texto que foi elaborado pela APAMA, e discutido e aprovado pela Sociedade do Martinho, no âmbito do projecto de remodelação do café. Entregue a todos os concorrentes, apresentava 4 partes: Regulamento, Aspectos Gerais, Programa e Peças a entregar. Transcrevo da parte III, “Programa/Zona Pública”, os pontos 1.1 – “Utilização do primeiro vão contíguo à rua da Prata para serviço de Cafetaria e refeições ligeiras visando a máxima rentabilização dessa área” e 1.2 – “Utilização dos segundo, terceiro e quarto vãos para uma exploração de Café e Restaurante com características idênticas às actuais”. Invocando, na “Memória Descritiva”, “os imperativos do próprio programa inicial do Concurso”, Hestnes Ferreira refere repetidamente o espaço “Cafetaria” ou “Café”, alternando este último com “café-restaurante”, não mencionando uma única vez o espaço como apenas restaurante. No ponto 4 – “Aspectos Metodológicos da Remodelação Proposta” – refere: “(…) os dois espaços públicos principais, ou seja, o Café-Restaurante, com os seus três módulos e o espaço junto à esquina da Rua da Prata com a Praça do Comércio, futura Cafetaria.”; no ponto 5 – “Descrição da Proposta Explicitada pelo Projecto de Execução” – [tendo em conta a necessidade de manter] “o mobiliário do café, enquanto imagem para a memória do mundo cultural lisboeta e para os seus utentes directos”, […] o principal espaço público do Martinho da Arcada continuará a ser o espaço Café, que não será objecto de transformações estilísticas mas apenas de obras de reparação e conservação.”

Perdoar-me-ão mais uma vez tantas transcrições, mas só assim se evidenciará a imperdoável negligência das instituições estatais quando a APAMA reclamou a sua intervenção e, no mínimo, a desonestidade da Sociedade do Martinho que vendeu as quotas a novos gerentes, aproveitando-se da nossa boa-fé. Acresce o facto de nos termos mostrado compreensivos com o seu silêncio, relativamente ao protocolo a desenvolver entre as duas partes, porque sentíramos como a destruição da Ferrari afectara sobremaneira a D. Albertina Mourão, situação que, a nosso ver, dificultaria uma qualquer resolução naquele momento. Aceito também que a APAMA tivesse sido demasiado ingénua ao respeitar um silêncio tão prolongado. O certo é que nunca nos passou pela cabeça a resolução que foi tomada, tanto mais que se efectuaram várias reuniões e nunca o tesoureiro Mário Matos abriu a jogada que nos bastidores preparava.

No jornal O Século de 26.11.88, descreve-se com minúcia todo o trabalho da APAMA e os objectivos que a norteavam, referindo-se mesmo palavras de Mário Matos (que aparece na fotografia de conjunto da direcção), intervindo, mas na sua qualidade de representante da Sociedade: “A Sociedade tem apoiado o processo porque está consciente da responsabilidade dos valores que estão à sua guarda. Não estamos interessados em alterar o café, cuja entidade queremos preservar. Queremos sim compatibilizar a manutenção dos valores com a rendibilidade económica do Martinho.”

Na Cafetaria de serviço em pé foram inteiramente subvertidas as intenções, implícitas e explícitas, que levaram à classificação do estabelecimento na sua globalidade interior e exterior, bem como o sentido do concurso nacional realizado e os significativos apoios concedidos para o concretizar. Perante esta situação, a APAMA, já sem o seu tesoureiro, Mário Matos, substituído por um ex-aluno, António Castro, porquanto aquele se recusara a reunir com a direcção, nunca explicando pessoalmente o que se passara, alertou as entidades que a nível estatal haviam subsidiado as obras de recuperação, bem como o projecto, enviando uma carta bem documentada ao Primeiro-Ministro, à Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, à Secretaria de Estado da Cultura, à Câmara Municipal de Lisboa e ainda à Presidência da República, solicitando que no âmbito dos seus serviços fosse possível levar a cabo uma acção correctora que repusesse a legitimidade de exploração comercial do estabelecimento, dentro do quadro previamente definido, como era aliás do conhecimento público. Ressalve-se que nessa carta, enviada às várias entidades e com data de 9.3.90, se juntava documentação que as mesmas conheciam, a saber: “Regulamento do Concurso a Nível Nacional Promovido pela APAMA”, “Memória Descritiva” do projecto do arq. Hestnes Ferreira e referências várias que surgiram na Imprensa. A resposta dos que se dignaram fazê-lo foi semelhante àquela a que estamos habituados, ou seja, “Estamos atentos à situação” ou na variante “Acompanhamos a situação”. Apenas a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais informou ter reencaminhado a carta para os seus Serviços Jurídicos, daí resultando nada.

Foto
O logotipo da APAMA

Na entrevista a Hestnes Ferreira, conduzida por Maria José Mauperrin (Expresso, 9.6.90), à pergunta “se entendia como a APAMA, que a atitude passiva da Secretaria de Estado da Cultura e da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais – perante o desrespeito da preservação do espaço convivencial e sobrevalorização do aspecto comercial – representa um precedente grave na defesa do património?”, respondeu Hestnes Ferreira: “É, pelo menos, um precedente elucidativo do que será o futuro da Baixa lisboeta. Se no momento em que se faz a recuperação de uma zona não é possível conservar-lhe as características, temos de ponderar, seriamente, o que vai acontecer ao resto da Baixa. E o caso do Martinho é paradigmático de como os cidadãos podem participar na vida das cidades. Apesar de em Portugal não haver essa tradição – a APAMA é a primeira Associação constituída em nome de um grupo de pessoas que leva por diante um projecto de defesa de um espaço e, agora, aparece a denunciar as irregularidades praticadas (contra o critério que presidiu à preservação do Martinho). Ora, as expectativas que se criaram em relação a este espaço devem-se sobretudo ao trabalho da APAMA junto da comunicação social.”

Perante o silêncio das entidades contactadas, a APAMA decidiu intensificar a sua acção, elaborando uma Carta-Aberta dirigida às entidades acima referidas e também à população em geral, na qual se relatava novamente o ocorrido, apelando-se à urgência de uma intervenção. A lista de assinaturas foi extensa, incluindo associados e não associados, portugueses e estrangeiros, escritores, directores e administradores da Fundação Gulbenkian (porventura a instituição particular que mais acarinhou todo o processo), professores universitários e do ensino básico e secundário, artistas plásticos, músicos, actores, fotógrafos, editores, jornalistas, estudantes e população em geral.

A 12.3.90, o jornal Público, que aparecera nas bancas a 5 de Março de 1990, noticia: “‘Novo’ Martinho da Arcada suscita protestos” / “Polémica instala-se à mesa do Café”. Com a preocupação de bem informar, o jornalista João Paulo Velez põe em confronto, numa notícia assaz desenvolvida, as duas partes, permitindo que o leitor ajuíze na base dos argumentos expostos: “É uma quebra de tudo o que ficou aprovado no programa de recuperação” […]. “A par da cafetaria rentabilizada, na zona que dá para a Rua da Prata, ficou claro no concurso lançado que a área das mesas serviria de café e restaurante, permitindo manter o espaço de convívio que é a melhor homenagem a Pessoa” (Maria do Carmo Vieira); “São calúnias. Estamos a cumprir o estabelecido. Temos uma secção de cafetaria e temos uma secção de restaurante, não fugimos a nada do que estava previsto. […] “Isto não é da APAMA. […] Teve um certo trabalho no início. Mas o subsídio de 30 mil contos concedido para a recuperação deve-se ao senhor primeiro-ministro, que a empresa trouxe até ao café e que como senhorio que é – o prédio é do Estado – desbloqueou os dinheiros.” (Manuel de Sousa Castro). E complementa o jornalista: “Manuel de Sousa Castro […] reconhece, todavia, que, de momento, é impossível lanchar ou tomar café sentado no Martinho.”

A propósito do então recém-criado jornal Público, não posso deixar de lembrar com gratidão quem teve a ideia de o criar, Vicente Jorge Silva, e foi seu primeiro director, e quem a ele se juntou, “Jorge Wemans, Augusto M. Seabra, Henrique Cayatte, José Manuel Fernandes, José Vítor Malheiros, Nuno Pacheco e, no Porto, Joaquim Fidalgo e José Queirós”, todos jornalistas vindos do Expresso. Imperioso será também transcrever palavras de Vicente Jorge Silva: “É preciso acordar antes que seja tarde. É preciso voltar às raízes da inquietação e inconformismo do verdadeiro jornalismo. […] Num tempo propício à ansiedade, à angústia e à desorientação, [...] é preciso que o jornalismo desperte da sua letargia auto-satisfeita ou da complacência com os instintos rudimentares do populismo”.

Não tendo a APAMA continuado a dinamizar culturalmente o Martinho que se tornara exclusivamente restaurante, ao arrepio do que fora aprovado pela Sociedade e pelo poder político, aceitou a amabilidade do Centro de Estudos Judiciários e do Clube dos Jornalistas para a realização das suas últimas iniciativas (artigo II). Tentando ainda repor a legalidade, escreveu de novo à SEC, e às restantes entidades envolvidas no processo. Transcrevo o conteúdo da carta, datada de 14.5.91, enviada a Pedro Santana Lopes – “Perante o silêncio às solicitações da APAMA, no sentido de se repor a legitimidade no ex-Café Martinho da Arcada, em cuja recuperação a Secretaria de Estado da Cultura participou, lamentamos o total desinteresse na resolução desta situação. Ela é tanto mais grave quanto as verbas disponibilizadas para a referida recuperação provirem do erário público, tendo acabado por beneficiar uma entidade privada (Sociedade do Café Martinho da Arcada) que não cumpriu as premissas que presidiram a essa atribuição, ou seja, a manutenção do Martinho da Arcada como Café (não como restaurante a tempo inteiro). E, no entanto, a manutenção do Café foi a origem do Movimento estudantil criado em 83/84, tendo em vista a classificação de interesse público do seu interior, enquanto café, bem como da APAMA, em 1986. Junto se envia uma lista de assinaturas de protesto contra a situação criada.”

A 28.5.91, o jornal Público, de novo através de João Paulo Velez, noticiou: “Contestada nova função do café de Pessoa / Santana Lopes interessa-se pelo ‘caso’ Martinho da Arcada”. No seu texto informava: “O Secretário de Estado da Cultura, Santana Lopes, confirmou ao PÚBLICO a sua intenção de comprovar se a utilização que está a ser dada ao Martinho da Arcada, após a recuperação do espaço, é aquela para a qual foram destinadas verbas oficiais. ‘Já pedi o dossier para saber o que se passa. E se efectivamente se verificar que o espaço não está a ser utilizado para os fins que justificaram os investimentos do Estado e na linha da sua tradição cultural, agirei em conformidade’, afirmou Santana Lopes.”

Esta situação de arrogância, que traz consigo a mentira, como reacção política à justa intervenção dos cidadãos em prol do que deveria ser defendido pelo poder político, e não o é, verificou-se em mais uma intervenção da APAMA. Hoje em dia, referindo a Casa Fernando Pessoa, situada no espaço onde viveu os últimos quinze anos de vida, o N.º 16 da Rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, todos pensarão, porque assim foi decretado, que à CML se deve a salvaguarda do referido espaço. A verdade é outra e está documentada. Em 1985, e ainda enquanto porta-voz do movimento que se criara em defesa do Martinho, sugeri ao proprietário do prédio da Rua Coelho da Rocha que colocasse uma lápide no edifício, dando a conhecer que ali vivera Fernando Pessoa, entre 1920-1935. Perante a sua renitência em fazê-lo, solicitei à CML que envidasse esforços para que a sugestão se concretizasse. Posteriormente, já criada a APAMA, reiterámos o pedido junto do vereador da Cultura, arq. Vítor Reis, mas a tarefa foi sendo adiada. Em 1988, perante um cadeado na porta do n.º 16, a APAMA pediu uma reunião de urgência ao presidente da Câmara, Krus Abecassis, que nos recebeu juntamente com o arq. Vítor Reis e aí soubemos, incrédulos, que fora deferida a demolição do prédio. A pressão da APAMA e da comunicação social, nomeadamente do Expresso (24.12.88), foi determinante para um recuo da CML. Sob o título “CML admite comprar casa de Pessoa”, ilustrado com uma fotografia da porta de entrada com um cadeado, o jornalista descreve toda a história da intervenção da APAMA e questionando Vítor Reis regista a sua resposta: “A demolição tinha sido deferida – explica Vítor Reis – porque a Câmara ignorava, até 1985, a relação da casa com a vida do poeta”. João Soares, presidente da CML, em 1993, ano da inauguração da Casa Fernando Pessoa, ofereceu, alheio à verdade, o galhardete à CML.

A despedida da APAMA foi simbolicamente a edição de um livro de temática pessoana, fortemente marcado pela solidariedade e pela generosidade dos intervenientes: o realizador João Botelho ofereceu a capa, os artistas, os seus direitos de autor (Família de Almada Negreiros, Fernando de Azevedo, Eurico, Cruzeiro Seixas, Martha Telles, Vieira da Silva, Jorge Martins, Costa Pinheiro, António Sena, Família de Mário Botas, António Dacosta, Emília Nadal, José João de Brito, Júlio Pomar, Bartolomeu Cid, José de Guimarães e Carlos Calvet), José Augusto Seabra, o texto introdutório “Da Mitografia à iconografia Pessoanas”, Rui Mário Gonçalves, o apoio à coordenação e a Quimera, através de José Carlos Alfaro, facilitou a edição que foi dada a conhecer em Novembro de 1991. O livro (já esgotado) começou a ser preparado em 1989 e o título que escolhi foi um verso de Alberto Caeiro – Passo e Fico, como o Universo.

Termino esta série de quatro artigos com as palavras de José Blanco (Fundação Gulbenkian), em carta que me dirigiu a 18.3.92: “Quero dizer-lhe uma coisa que certamente lhe agradará: o livro já está a correr mundo, pois a Fundação ofereceu-o a instituições desde o Japão aos Estados Unidos, desde a Polónia à Índia! Se foi este o último projecto que a ligou à APAMA, creio que não podia ter sido melhor a despedida […] um lindíssimo livro, que vai ocupar um lugar de honra e destaque nas bibliotecas por esse mundo fora.”

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