Afegãos enfrentam “avalanche de fome e miséria”

ONU preocupada com notícias de “execuções extrajudiciais” e exibição pública de cadáveres desde o regresso dos taliban ao poder em Cabul.

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Uma menina afegã a caminho das aulas numa escola corânica dos arredores de Cabul ZOHRA BENSEMRA/Reuters

As “escolhas políticas” dos dirigentes políticos mundiais “são uma questão de vida ou de morte” para os afegãos e “definirão o caminho futuro do Afeganistão”, avisou esta terça-feira a Alta Comissária adjunta da ONU para os Direitos Humanos, Nada al-Nashif, na apresentação do seu último relatório sobre o país, em Genebra. As famílias afegãs, sublinhou, enfrentam “extrema pobreza e fome”, com muitas levadas a tomar medidas desesperadas, incluindo trabalho infantil, casamento precoce e “até a venda de crianças”.

De acordo com o Programa Alimentar Mundial (PAM), 98% dos afegãos já não comem o suficiente e sete em cada dez famílias estão a pedir emprestado para comprar comida, o que as empurra ainda mais para a pobreza, afirmou Tomson Phiri, porta-voz da agência da ONU, num outro briefing em Genebra. “A espiral de crise económica, o conflito e a seca significam que agora a família média mal consegue lidar com a situação”, relatou.

“Não podemos perder nem um momento”, alertou Phiri. “A nossa directora para o país [Mary-Ellen McGroarty] descreve a situação como bastante terrível. Ela diz que é uma ‘avalanche de fome e miséria’.”

Tanto Phiri como Nashif notaram “o impacto das sanções e do congelamento dos fundos do Estado afegão”, bem como de muita da ajuda internacional, assim que os taliban regressaram ao poder, a meio de Agosto, com o aumento dos preços dos bens básicos, o “colapso do sistema bancário” e a “grave crise de liquidez”. São as tais “difíceis decisões políticas que os Estados membros” da ONU são chamados a tomar nesta “conjuntura crítica” – como outros responsáveis das Nações Unidas têm feito, também Nashif avisou que destas escolhas pode resultar ou não “o total colapso económico” do Afeganistão.

Escolhas que as restantes palavras de Nashif tornam ainda mais complexas, como a denúncia de dezenas de “execuções extrajudiciais” de antigos membros das forças de segurança afegãs e de outras pessoas associadas ao antigo governo, com pelo menos 72 mortes a poderem ser atribuídas aos extremistas no poder entre Agosto e Novembro. “Em vários casos, os corpos foram expostos em público. Isso exacerbou o medo entre uma parte importante da população”, afirmou a responsável da ONU.

Vários países já tinham manifestado a sua preocupação face às “execuções sumárias” denunciadas no início do mês pela organização não-governamental Human Rights Watch, pedindo a abertura de um inquérito. “Houve casos de mortes de antigos membros das forças de segurança mas por causa de rivalidades ou inimizades pessoais”, justificou o porta-voz do Ministério do Interior taliban, Qari Sayed Khosti.

A “profunda crise humanitária” ameaça “os direitos humanos mais fundamentais” e os taliban, que insistem querer legitimidade e garantem que o seu novo regime será diferente daquele que governou o Afeganistão entre 1996 e 2001, continuam a ser pouco claros em muitas das suas promessas. Num documento, “decreto sobre os direitos das mulheres”, publicado pela cúpula do movimento no início do mês, pede-se ao Governo que “tome medidas sérias para fazer respeitar os direitos das mulheres” no Afeganistão, incluindo impedir os casamentos forçados.

Mulheres profissionais de direito

Um “sinal importante” para Nashif, mas que “deixa muitas questões sem resposta”: “Por exemplo, não indica uma idade mínima para o casamento e não faz referência aos direitos mais alargados das mulheres e das raparigas à educação, trabalho, liberdade de movimento ou de participação da vida pública”. A Alta Comissária adjunta lamentou o “acentuado declínio” da frequência do ensino secundário por raparigas, muito por falta de professores – meninas só podem ser ensinadas por mulheres agora.

A ONU também documentou a morte de pelo menos oito activistas de direitos humanos e de dois jornalistas desde Agosto, para além de 59 detenções ilegais e de ameaças contra membros da organização, disse Nashif ao Conselho, em Genebra. “A segurança dos juízes, procuradores, e advogados – particularmente mulheres profissionais de direito – é um tema de alarme particular”, acrescentou.

Nasir Ahmad Andisha, enviado do antigo governo afegão à ONU em Genebra, também participou no debate desta terça-feira, acusando os taliban de inúmeros abusos. “Com a tomada militar de Cabul pelos taliban não assistimos só à total anulação de duas décadas de avanços… o grupo está também a cometer uma litania de abusos com total impunidade, que em muitos casos não são relatados nem documentados”, afirmou Andisha. Segundo o embaixador, que ainda é reconhecido pelas Nações Unidas, há “relatórios credíveis de purgas tribais e étnicas em várias províncias”.

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