2021: quando a cidadania britânica passou à condição de privilégio

A Nationality and borders bill é uma lei contra quem, apesar de naturalizado, será sempre um estrangeiro e quem o diz agora é a justiça de uma nação inteira. Sem aviso prévio.

Foto
Reuters/HANNAH MCKAY

A resposta do Home Office foi imediata: “A cidadania britânica é um privilégio e não um direito”, arrogando-se deste modo o poder de retirar a nacionalidade sem aviso prévio a todos quantos representem um perigo para a segurança nacional.

O exercício deste poder, prestes a passar a lei através da Nationality and borders bill, não tem, no entanto, como alvo quem tenha nascido no Reino Unido. Se assim fosse, o Governo de Sua Majestade estaria em incumprimento dos tratados internacionais ao engrossar as listas de apátridas.

Não, o exercício deste poder tem como alvo todos os cidadãos que, por serem naturalizados, têm a possibilidade de residir noutro país e, por conseguinte e de acordo com o governo, podem perder o “privilégio” da cidadania britânica. Ergo, a Nationality and borders bill é uma lei feita contra quem procura no Reino Unido uma segunda, terceira, quarta e por aí adiante oportunidade na vida.

A Nationality and borders bill é uma lei contra quem, apesar de naturalizado, será sempre um estrangeiro e quem o diz agora é a justiça de uma nação inteira. Sem aviso prévio. Porque se comete um acto contra os interesses da segurança nacional. E se as palavras “ataque terrorista” vêm de imediato à mente, tais actos não estão inscritos na lei. A interpretação? A interpretação é livre.

Num país à beira de ilegalizar todo e qualquer protesto susceptível de perturbar a ordem pública, será gritar pelos nossos direitos um atentado à segurança nacional?

E ensinar as crianças do amanhã em contexto de sala de aula sobre os movimentos cívicos dos séculos XX e XXI? Será este também um atentado à segurança nacional? Ou escrever um livro? Ou um artigo para um jornal?

Assim será para todas estas perguntas desde que quem proteste, ensine, discuta, escreva ou respire não tenha nascido em solo britânico. Porque se cria um precedente. O precedente da perda da cidadania por decisão unilateral, sem direito a recurso ou a notificação prévia.

E quando uma simples multa por excesso de velocidade carece de aviso, faltam-me as palavras diante da obstinação deste governo no sentido de culpabilizar o estrangeiro, o não nativo, pelos erros da humanidade. Basta saber falar outra língua.

Embevecidos, assistimos aos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, como a grande comunhão dos povos. Estávamos no centro do mundo e o mundo olhava para nós como um dos seus. Bastou um ano para que tudo mudasse graças a Theresa May e à sua campanha de rua pela repatriação de imigrantes ilegais.

De então para cá tivemos de tudo um pouco: a saída da União Europeia, a impossibilidade de emigrar para o Reino Unido sem emprego prévio, penas de prisão para quem ouse chegar a terras britânicas ilegalmente e agora a imunidade para os serviços de segurança caso as suas manobras de dissuasão resultem na morte de refugiados em pleno Canal da Mancha.

Somos todos refugiados. Temos sonhos. Temos um telemóvel e contas nas redes sociais. Quando há bateria e rede relatamos esta viagem. Temos fome. Saudades. Temos desespero e algum dinheiro entre familiares e aquele trabalho antes da chegada das bombas e balas de fabrico britânico, ainda hoje à nossa espera caso se cometa o erro de voltar.

O Governo de Sua Majestade, infelizmente, não vem ao encontro desta premissa ou não fosse a cidadania, e com a cidadania o direito ao trabalho, saúde, educação, em suma, o direito a uma vida, o tal privilégio cada vez mais distante, apenas ao alcance de poucos.

2022? Será mais um ano de luta: ainda temos muita estrada para andar.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários