Quatro arguidos no processo da morte de Sara Carreira. Cristina Branco e Ivo Lucas acusados de homicídio por negligência

O despacho de acusação, com data de 3 de Dezembro, indica que todos os condutores daquela noite tiveram um comportamento perigoso na estrada.

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Os ferimentos provocados pelo acidente foram “causa directa e necessária” da morte da cantora Sara Carreira ÉSSÊBYSARACARREIRA/INSTAGRAM

A fadista Cristina Branco e o actor Ivo Lucas incorreram, na noite do dia 5 de Dezembro de 2020, no crime de homicídio negligente. De acordo com o despacho de acusação, revelado pelo Correio da Manhã e ao qual o PÚBLICO teve acesso, foram os comportamentos de ambos que resultaram no acidente que causou os ferimentos de Sara Carreira descritos no relatório pericial e que foram a “causa directa e necessária” da morte da filha mais nova do cantor Tony Carreira. A jovem tinha 21 anos.

Os dois artistas incorrem ainda em contra-ordenações graves e leves ao Código da Estrada, nomeadamente no que diz respeito à não-manutenção da distância de segurança entre veículos e não sinalização de perigo, no caso da primeira, e à má utilização das vias à esquerda para circulação e excesso de velocidade, para o segundo.

Há ainda outros dois arguidos no processo. Um deles é o condutor do automóvel no qual Cristina Branco bateu, o que resultou no primeiro acidente e que deixou o carro da fadista imobilizado e virado em contramão, na via central da A1, cerca do km 60, sentido Norte-Sul, incorre num crime de condução perigosa, previsto no Código Penal, porque apresentava uma taxa de alcoolemia superior ao permitido (1,18 g/l), tendo ingerido bebidas alcoólicas antes de agarrar no volante, “violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária”. Depois, incorre ainda em contra-ordenações leves e graves, também pelo facto de estar a conduzir sob o efeito de álcool e ainda por circular a uma velocidade inferior a 50 km/h sem razão ou sinalização (o veículo seguia na auto-estrada a uma velocidade estimada entre 28,04 e 32,28 km/h).

E, por fim, o quarto arguido é o condutor do veículo que, já depois do acidente da viatura onde seguia Sara Carreira, se apresentou em excesso de velocidade (seguia a uma velocidade entre 146 e 155 km/h), não desacelerando nem travando à passagem pelos primeiros carros acidentados, acabando por embater contra o veículo conduzido por Ivo Lucas. As acusações são de crime de condução perigosa, uma contra-ordenação grave, relacionada com a velocidade a que seguia e as condições circundantes que ignorou, e uma leve, a propósito de não ter mantido a distância de segurança.

Um castelo de cartas

O despacho de acusação descreve pormenorizadamente o acidente que se assemelha a um castelo de cartas ao qual basta um pequeno toque para ruir por completo. Na origem, concluiu o inquérito, está um automóvel a circular na faixa da direita a uma velocidade inferior a 50 km/h, sem qualquer sinalização de perigo.

O condutor deste veículo, consta do documento, seguia com uma taxa de alcoolemia de 1,18 g/l, mais de o dobro do permitido. Ainda assim, por 0,02 g/l, o condutor evitou que a ingestão de bebidas alcoólicas fosse descrita como crime (o que lhe podia valer por si só uma pena de prisão de até um ano).

Às 18h30, Cristina Branco seguia com a filha noutro veículo, na mesma faixa de rodagem, a uma velocidade entre 108 e 114 km/h, não tendo reduzido ou travado, embatendo com a dianteira na traseira do primeiro carro. Este foi projectado para a via mais à esquerda, mas acabaria por encostar na berma à direita, a cerca de 120 metros do local do acidente. Já a viatura conduzida pela fadista colidiu contra o rail de segurança, rodou sobre si e acabou parado, em sentido contrário ao da marcha, na faixa central. A fadista saiu do carro com a filha e refugiou-se atrás do rail da esquerda, deixando as luzes e os quatros piscas ligados.

Passaram 19 minutos entre o primeiro acidente e a passagem do veículo que transportava Ivo Lucas e Sara Carreira que, de acordo com o despacho, seguia a uma velocidade entre 131 e 139 km/h, na faixa central. Quando viu o veículo de Cristina Branco parado no meio da estrada, o actor, explica o documento, não reduziu a velocidade nem travou, optando por guinar o carro para a esquerda. Porém, a manobra não foi efectuada a tempo e acabou por ir contra a dianteira do carro imobilizado, que rodou sobre si mesmo, indo uma vez mais contra a guarda lateral de segurança.

O carro onde seguia Ivo e Sara embateu contra o separador central, capotando várias vezes. Parou, por fim, a quase 100 metros do local do primeiro embate, na faixa esquerda e “quase perpendicular ao eixo da faixa”.

De acordo com o proferido no despacho, este acidente dá-se pelo facto de Cristina Branco ter revelado desatenção e não se ter dado conta de um automóvel em circulação excessivamente lenta, não se desviando a tempo, o que levou a que o seu automóvel ficasse a obstruir a faixa central, mas também pela distracção de Ivo Lucas que não se apercebeu a tempo do carro parado e, pelo facto de seguir a uma velocidade superior a 120 km/h, não ter sido bem-sucedido na manobra de evasão.

O que se seguiu mal deu tempo para respirar, dois minutos depois de Ivo Lucas ter embatido contra o carro de Cristina Branco, um quarto automóvel aparece em excesso de velocidade (entre 146 e 155 km/h), na faixa central e junto ao limite esquerdo, depois de ter realizado uma ultrapassagem a um veículo que seguia na da direita.

Segundo o inquérito realizado, o condutor não reduziu a velocidade nem travou ao deparar-se com um cenário de acidentes, estando um dos automóveis encostados à berma quase totalmente destruído. Em vez disso, relata-se, percorreu 96 metros, pelo meio de fragmentos dos veículos acidentados, sem nunca ter reduzido a velocidade, acabando por embater contra o automóvel onde se encontravam Ivo Lucas e Sara Carreira – o carro do último condutor viria a parar apenas 118 metros à frente.

A morte de Sara Carreira foi confirmada no local, tendo sido registados três feridos, um dos quais com gravidade, que, na altura, foram transportados para o Hospital de Santarém.

O processo deverá seguir agora para instrução, já que o advogado do último interveniente no acidente avançou à Lusa, na segunda-feira, que ia entregar um requerimento nesse sentido esta terça-feira. A fase de instrução, que permite que um juiz de instrução criminal decida se o processo segue, e em que moldes, para julgamento, é facultativa. No entanto, basta que um arguido a requeira para que abranja todos os envolvidos.

No decorrer da instrução, os arguidos, mas também o Ministério Público, podem apresentar provas que, por qualquer razão, não tenham sido tidas em conta durante a fase de inquérito.


Artigo actualizado às 12h32 com os detalhes das conclusões do inquérito sobre os acidentes, como consta no despacho de acusação
Artigo actualizado às 13h01 com declarações do advogado do quarto arguido à Lusa sobre fase de instrução

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