Os nomes todos

Penso que ainda somos um povo com medo de perguntar. Durante décadas tomámos o silêncio como seguro nesse receio entranhado de ver na interrogação, uma ameaça. As ditaduras são planas, alimentadas pela falta de perguntas.

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"Nada é mais triste do que o silêncio que não se escolheu" Mag Rodrigues

Devia ter sido perguntadora de profissão. Mesmo que não exista o ofício, nem nunca ninguém o tenha ambicionado. Pouco me importa.

Há dias, um homem que admiro falava-me dessa arte de perguntar e eu percebi que ‘perguntadora’ me resumiria.

Cada vez gosto mais das profissões sem academia que as integre, sem pompa, sem destino estrangeiro que as valide. Sem calhamaços que nos tirem horas de sono para nos fazerem sentir incluídos. Assumo que gosto de furar o sistema. Pensando bem: sempre o fintei, mesmo que de forma subtil ou discreta.

O meu irmão, hoje mesmo, disse: “arqueóloga” e referia-se a mim como aquela que descobre as pessoas ou vai ao encontro das datas que antes não se cruzaram. Ser perguntadora leva-me a estes achados. É nestes momentos que a vida me faz sentido. Talvez, sim, eu provoque o passado para ele chocar com o presente.

Duas fotografias geram hoje este diário semanal: durante 50 anos olhei para um retrato onde uma mulher pequena, de olhar intenso, nos fitava, destemida. Foi no Porto que ela estava à minha espera. O que tinha para me contar poderia começar um romance: ela era a mulher que está no retrato da minha parede: pequena, franzina, uma mulher que bailou com a vida e não parou de dançar. Os passos dela esperavam os meus naquele dia. Agora olho para a fotografia e já sei como se chama. E ela já sabe que sou a mulher que ela sempre pensou que eu seria.

Por causa da mesma fotografia, nesse retrato de gente medianamente feliz, descobri que o vestido da noiva, noiva cuja satisfação embaraça as objectivas, tinha originado o meu fato de baptizado. Não era um fato: era uma saia de pregas nascida do vestido de noiva da minha mãe. A minha mãe era a noiva moderadamente feliz. A mulher franzina que aparece no retrato de casamento era uma amiga dela que se encontrou comigo 50 anos depois. Um retrato pode contar demasiadas histórias. Por que não ‘perguntadora’ de profissão? Ou arqueóloga de nomes?

Rio discretamente quando penso num baptizado de cabelo cortado curto e uma saia de pregas branca nascida do vestido de noiva da minha mãe. Como rio agora de um vestido de noiva, o meu, há dias, feito de umas calças e um casaco que me fizeram sentir mulher. Mais mulher. Fintando os destinos.

Espanta-me que nunca ou poucas vezes queiramos desafiar as convenções por medo que isso nos enfraqueça seguindo o olhar dos outros.

Continuamos, apesar de tudo o que conquistámos (tantas vezes sozinhos) a recear o julgamento dos outros e isso é ou não espantoso, chegados aqui com tanta liberdade?

A minha liberdade, a de perguntadora, é a de questionar as convenções e levar o poder nas respostas que recebo. Ter descoberto que a mulher da fotografia inicial se chama Maria do Carmo ou que a saia do meu baptizado (aos 4 anos) foi feita a partir do vestido de noiva da minha mãe, traz-me respostas para perceber o que sou, em que mundo me desenvolvi para não recear levar um smoking de ‘homem’ — se isso existe — no meu casamento.

As perguntas ainda estão todas por fazer. Acredito hoje, por experiência própria, que não arriscamos questionar o nosso passado junto dos nossos pais com receio de nos defrontarmos com fotografias que desconhecemos, que não queremos que sejam reveladas, com protagonistas fugazes que ali, num momento, foram determinantes.

A perguntadora sabe que nalgumas respostas virão outras e misteriosas questões. Rostos por desvendar, fatos que nunca tiveram (aparentemente) uma razão de ser.

Penso que ainda somos um povo com medo de perguntar. Durante décadas tomámos o silêncio como seguro nesse receio entranhado de ver na interrogação, uma ameaça. As ditaduras são planas, alimentadas pela falta de perguntas.

Fotografias cheias de rostos mas sem nomes. Sem a arqueologia afectiva que nos devolve a razão de estarmos vivos.

Pergunto-me – neste jeito de perguntadora – se as ditaduras precisam mesmo de voz ou se idealmente viveriam no silêncio?

Nada é mais triste do que o silêncio que não se escolheu.

As minhas fotografias vão tendo nomes. Uma pergunta que nunca acaba.

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