A verdade da história do Café Martinho da Arcada: o Projecto de Recuperação – III

A 22 de Fevereiro de 1990, o Martinho da Arcada reabriu e as notícias sobre o acontecimento encheram os jornais, enchendo-se também o Martinho. Mas o objectivo principal do projecto de arquitectura – conservação do espaço enquanto café – foi depressa esquecido.

Do terraço deste café olho tremulamente
para a vida. […] Homem de ideais que sou,
quem sabe se a minha maior
aspiração
não é realmente não passar de ocupar

este lugar a esta mesa deste café?
Fernando Pessoa/Bernardo Soares,
Livro do Desassossego

O processo envolvendo a defesa do Café Martinho da Arcada desenrolou-se sob o signo da tenacidade e do contacto que não admite tréguas, num trabalho contínuo e deveras cansativo, abrangendo todas as fases da sua história entre 1984 e 1992: 1.ª - recolha de assinaturas para a obtenção da classificação de “interesse público” do seu interior; 2.ª - formação da Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA), com sede no Martinho, e planeamento de actividades culturais, 3.ª - procura de mecenato para custear as obras de salvaguarda do café e a 4.ª - tentativa vã de solucionar a polémica, inesperadamente ocorrida em 1990 após a sua reabertura.

Juntamente com a organização do plano de actividades culturais, no Martinho, a partir de 1987, focou-se o trabalho da APAMA não só em conseguir a declaração de “manifesto interesse cultural do restauro do café, para efeitos de dedução fiscal”, indo ao encontro dos interesses da Sociedade do Martinho da Arcada, mas também em promover um concurso visando a recuperação do café, em estado de degradação evidente, de forma a reassumir características que possuía na época em que Fernando Pessoa o frequentava (anos 20 e 30). No que se refere ao “interesse cultural”, acima referido, regozijou-se a APAMA e a Sociedade com a carta de 26.5.87, da Secretaria de Estado da Cultura, assinada por Maria Teresa Gouveia, com resposta favorável ao solicitado. Sobre o concurso e o seu desenvolvimento, o arq. Pedro Vieira de Almeida, vice-presidente da associação, foi peça-chave, tendo preparado uma conferência de imprensa (25.11.87) no Martinho, durante a qual foi entregue a informação que transcrevo:

“A APAMA-Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada inscreve nos seus objectivos principais o restauro do Café que Fernando Pessoa frequentou. O restauro de um antigo Café lisboeta onde se reuniram algumas das mais importantes figuras do Modernismo Português reveste-se de especial significado, tanto mais quanto assistimos hoje a uma descaracterização crescente da cidade de Lisboa, em especial da zona da Baixa que se transformou num corredor de automóveis, espaço de lojas e escritórios e nunca lugar de encontro. A APAMA tem vindo a actuar junto das autoridades no sentido de despertar sensibilidades para o abandono a que tem sido votado um dos poucos Cafés que teimaram em sobreviver contra ventos e marés das ‘modernizações’. O Café Martinho da Arcada é ainda o mais antigo de Lisboa. Por tudo isto, a APAMA resolveu promover, em colaboração com a Associação dos Arquitectos Portugueses, um CONCURSO NACIONAL DE IDEIAS para o restauro do Martinho da Arcada. Este concurso, o primeiro com tais características que se realiza em Portugal, tem como objectivo um amplo debate acerca dos problemas que levanta um restauro deste tipo. Encaramos o Café como um todo e nada poderá ser descurado, desde o mobiliário ao talher.” Foram vários os jornalistas presentes e a boa notícia espalhou-se através de O Diário (2.11.87), A Capital (26.11.87), Diário Popular (26.11.87), Diário de Lisboa, Expresso (-.11.87, jornalista Orlando Raimundo) e Diário de Notícias (14.12.87).

O concurso para a escolha da equipa responsável pela remodelação recebeu o apoio da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), do Instituto Português do Património Cultural (IPPC), da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), da Câmara Municipal de Lisboa (CML), da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA) e da Associação dos Arquitectos Portugueses (AAP). A 19 de Dezembro de 87, a APAMA colocou em jornais de Lisboa e Porto, tendo eu em minha posse apenas a documentação relativa ao Porto (O Comércio do Porto) e (O Primeiro de Janeiro), o anúncio do “Concurso Público para a Recuperação e Remodelação do Café Martinho da Arcada”, decorrendo o prazo de inscrição até 31 de Dezembro. Participaram no concurso oito trabalhos de arquitectura, reunindo vinte e cinco arquitectos de Lisboa e Porto.

A 23 de Abril de 1988, o jornalista Orlando Raimundo do Expresso desenvolvia substancialmente a notícia intitulada: “Martinho da Arcada regressa aos anos 30 – Filho do poeta Gomes Ferreira reinventa velho café de Pessoa.” A equipa vencedora foi seleccionada por um júri constituído por representantes da APAMA, SEC, AAP, AICA e Sociedade do Martinho. A 28 de Julho de 1988, a APAMA fez a entrega dos prémios aos vencedores: 1.º Prémio para Raúl Hestnes Ferreira e Filipa Vedes e o escultor Ângelo de Sousa e dois segundos prémios ex aequo para Ana Mafalda Cansado/Nuno Félix/Maria Santos Dias e Manuel Máximo Lapão/Ana Maria Anão, momento acompanhado pelo Diário de Lisboa (29.7.88) e pelo Diário de Notícias (30.7.88).

Em reunião de direcção com a Sociedade do Café Martinho da Arcada, precisamente a 23 de Julho de 1988, na Pastelaria Ferrari, gerida também por D. Albertina Mourão, entregámos uma carta com o projecto de um protocolo, visando o relacionamento futuro entre as duas partes. Representavam a Sociedade, Albertina Mourão e o seu genro, Mário Matos, este último simultaneamente tesoureiro da APAMA. O terrível incêndio na Baixa de Lisboa, a 25 de Agosto de 1988, pondo fim às nossas reuniões na Ferrari, tristemente destruída pelo fogo, deu azo a que, apesar de instados a esse propósito, nunca a Sociedade respondesse à referida carta, adiando Mário Matos o assunto sucessivamente. Assim, o projecto nunca chegou a ser apreciado pela Sociedade, e a APAMA, numa atitude demasiado ingénua, continuou generosamente a cumprir os seus objectivos.

Na tarefa árdua de obter a verba necessária à concretização da obra, continuámos a desenvolver variadíssimos contactos, com privados e públicos, tendo sabido pelo próprio Primeiro-Ministro (Cavaco Silva), que connosco almoçara no Café Martinho (28.12.88) e nos felicitara pelo trabalho desenvolvido, que “o Governo não queria que terminasse o ano do centenário de Fernando Pessoa, mantendo-se a incerteza sobre o restauro do café”, notícia que apareceu igualmente no jornal Expresso (31.12.88). Directa ou indirectamente, o valor dos fundos angariados pela APAMA foi de 37 mil contos (185 mil euros), verba que cobriu o pagamento das obras (construção civil, águas, esgotos e electricidade), o projecto e o restauro do mobiliário. A Sociedade do Café Martinho da Arcada, conforme foi determinado, investiu 8.500 contos (42,5 mil euros) em climatização e equipamentos, tendo sido o custo total da obra, segundo informação do Ministério das Obras Públicas (MOP), cerca de 42 mil contos (210 mil euros). O maior contributo foi o deste ministério – 34 mil contos (170 mil euros) sendo os restantes 3 mil contos (15 mil euros) obtidos através de várias instituições, estatais e particulares, contactadas também pela Associação.

Perdoar-me-ão o pormenor da informação que se segue, mas creio que compreenderão o seu significado. Os 3 mil contos (15 mil euros) foram obtidos através dos apoios da SEC – mil contos (5 mil euros) para subsídio de apoio ao Concurso Nacional e projecto do arquitecto; Fundação Luso-Americana, 400 contos (2 mil euros), pagamento do 1.º Prémio do concurso; Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa – 250 contos (1.250 euros), pagamento do 2.º Prémio do concurso; APAMA – 250 contos (1.250 euros), pagamento do 2.º Prémio do concurso; CML – mil contos (2 mil euros), recuperação do mobiliário; Fundação Oriente – 250 contos (1.250 euros), “concretização do projecto”. A este propósito convém salientar que a APAMA, ao solicitar o apoio para as obras de recuperação do Martinho, explicitava o facto de haver um projecto resultante do concurso a nível nacional, promovido pela Associação. As próprias entidades que responderam afirmativamente, por escrito, explicitavam ser “a verba atribuída para a recuperação do Café Martinho da Arcada, com base no projecto do arq. Raúl Hestnes Ferreira seleccionado em concurso promovido pela APAMA.”

Em finais de Outubro de 1989, o Café Martinho da Arcada fechou as suas portas para obras, havendo em todos a preocupação de que aquelas não se prolongassem a fim de minimizar prejuízos. Volvidos cerca de 4 meses, a 22 de Fevereiro de 1990, o Martinho da Arcada reabriu e as notícias sobre o acontecimento encheram os jornais, enchendo-se também o Martinho, como é visível na fotografia do Diário de Notícias (23.2.90). Relativamente aos jornais que noticiaram o evento, Diário de Lisboa (22.2. 90), A Capital (23.2.90), O Diário (23.2.90) Expresso (24.2.90) e Correio da Manhã (3.3.90), há a lamentar algumas afirmações, como a do Diário de Notícias que registava, a dado momento: “Foi classificado em 1985, e os donos decidiram vender as suas quotas aos membros da APAMA.” Na verdade, venderam as suas quotas às escondidas, mas a outros que não a APAMA que aceitara inclusive que o tesoureiro da direcção, Mário Matos, pertencesse simultaneamente à Sociedade (por quotas) do Martinho da Arcada, permitindo-lhe estar a par dos fundos que íamos recolhendo para custear a recuperação do velho café.

Por isso foi tão surpreendente que, duas semanas antes da inauguração, Mário Matos (a sogra, D. Albertina Mourão, não tinha funções de gerência desde 1989) informasse a direcção da APAMA, usando alguém que não conhecíamos, o Sr. António Ribeiro, dizendo que havia uma nova Sociedade, ou seja, a anterior, aquela a que pertencia o nosso tesoureiro Mário Matos, tinha vendido as suas quotas ao Sr. Manuel Castro e ao Sr. António Sousa. Um exemplo perfeito da “arte de aproveitar a generosidade alheia”, como escreveu o jornalista Orlando Raimundo, no Expresso (9.6.90). Ainda fizemos uma reunião com os novos gerentes, dando-lhes conta de todo o processo e salientando o objectivo principal do projecto de arquitectura – conservação do espaço enquanto café – o que aparentemente foi aceite, e até reafirmado na Rádio e jornais, mas depressa esquecido, como viemos a constatar.

Preparara a Associação, para o dia 22 de Fevereiro, uma intervenção de Agostinho da Silva e leitura de poemas pessoanos por Rui Pedro (RDP1) e o actor João Grosso, o que acabou por não se concretizar porque o ambiente não o propiciou, visualizando-se no interior um assalto à comida que abundava e no exterior a estupefacção de um pequeno grupo face ao que acontecia: Marina Tavares Dias, Rodrigues da Silva, José Blanco, Vieira de Almeida, Rui Godinho, Júlia Fernandes, António Castro, António de Almeida (alunos, os dois últimos) e eu própria. E entre associados e grande número de apoiantes do movimento viram-se também Marcelo Rebelo de Sousa, o ministro João Oliveira Martins (Obras Públicas, Transportes e Comunicações) e Almeida Ribeiro (Provedor da Justiça), entre muitas outras individualidades.

Após a inauguração, foi a APAMA alertada por associados assíduos do Martinho de que não os deixavam entrar para tomar a sua ‘bica’ e sentar-se no espaço que anteriormente funcionara como café, agora reservado, segundo diziam, exclusivamente a restaurante de luxo. Foi após esse alerta que eu e Vieira de Almeida falámos de novo com os novos gerentes, tendo-se concluído dessa conversa que a nossa acção não era bem-vinda, tanto mais que inexplicavelmente garantiam que o Martinho “não voltaria a ser frequentado por embriagados e gente esquisita com brinco na orelha”. Também o arq. Hestnes Ferreira, no Expresso (entrevista por Maria José Mauperrin, 9.6.90) se insurgiu contra o que se passava: “O que me parece dever salientar é que não é apenas importante preservar estruturas mas também aquilo que se passa lá dentro. Há que ter atenção a isso, caso contrário, a história do Martinho repetir-se-á um pouco por toda a parte.”

A 15 de Março de 1990, numa sala amavelmente cedida pelo Sindicato dos Jornalistas, a APAMA fez uma conferência de imprensa que a comunicação social traduziu em títulos elucidativos: “Conferência de Imprensa da APAMA revela muitas mágoas/ A morte do café Martinho da Arcada” (Marina Tavares Dias, Diário de Lisboa,16.3.90); “À Revelia do Projecto de Recuperação/ Martinho da Arcada transformado em mais um restaurante de luxo” (O Diário, 16.3.90); “Uso indevido de verbas públicas / ‘Amigos de Pessoa’ acusam ex-proprietários do Martinho” (Orlando Raimundo, Expresso, 9.6.90). Todos sublinhavam o facto de as verbas terem sido concedidas à luz do “interesse cultural do café”; o desconhecimento da APAMA em relação “à venda do café”; “o desrespeito pelo compromisso assumido – e implícito no projecto de recuperação – de o Martinho da Arcada continuar a funcionar como café.” Também a 16 de Março, O Jornal dava conta, numa pequena notícia, de que o repórter tentara “tomar a bica da ordem, mas só serviam ao balcão da chamada cafetaria”.

O facto de se estar a confundir a Cafetaria, “espaço novo”, criada para refeições rápidas, com o café, “espaço antigo”, de lazer e de recolhimento onde, sentado, se pode ler, escrever ou falar tomando calmamente uma ‘bica’, deu-nos a leve esperança de que alertando os organismos governamentais alguma coisa poderia mudar. E assim surgiu nova Carta-Aberta cujo conteúdo e consequências desenvolveremos no próximo e último artigo sobre este período do Café Martinho da Arcada.

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