Sobre a vacinação das crianças e outras infantilidades

A nova tentativa para intoxicar o debate público é inventar em Portugal o debate sobre a vacinação obrigatória. Já foi repetido à exaustão que é estúpido obrigar as pessoas a algo que elas já querem fazer, mas isso pouco interessa - quem ouvir a IL ou o Chega, ou até mesmo o PSD fica com a certeza de haver quem queira a vacinação obrigatória em Portugal.

Apesar do tema ser sobre crianças, não era de esperar que fosse tratado com tamanha infantilidade. A DGS decide fazer caixinha sobre pareceres relativos à vacinação de crianças, a direita extremada encarniça-se para conhecer os pareceres esperando que sejam contrários à vacinação, a extrema direita quer fazer oposição à vacinação geral obrigatória que nunca esteve em cima da mesa. É uma parvoíce cacofónica que apenas cria ansiedade desnecessária e amplifica os populismos mais comezinhos. É a pandemia na versão ópera bufa.

Partilho, logo de início, a minha opinião: havendo a orientação médica para vacinação das crianças entre os 5 e os 11 anos estaria disponível para a seguir, apesar de não ser obrigatório. Apenas uso o condicional porque no meu caso a questão é hipotética dado não ter crianças a cargo com essas idades. Ressalvo que esta posição não significa a rejeição de questões, dúvidas ou esclarecimentos, bem pelo contrário - os responsáveis da saúde pública têm de estar à altura da confiança que neles estamos disponíveis para depositar. Mas, confesso, as minhas reservas não se colocam no patamar científico.

Dizem os especialistas que há vantagens individuais, mas são as vantagens coletivas que mais pesam na decisão da vacinação das crianças. Reduz-se o contágio entre crianças, que é maioritariamente assintomático, reduzindo a propagação na comunidade diminuindo o risco geral. Num momento em que aumenta o número de casos com a nova variante, a proteção adicional não será despicienda. Contudo, não elimina uma outra urgência: garantir a vacinação à escala global. Como estamos a perceber nos dias que correm, é na falta de solidariedade e na primazia do mercado sobre a saúde dos povos que novas estirpes grassam e, a qualquer momento, podem colocar em causa todo o esforço de vacinação. Seria na eliminação das patentes, na garantia da produção distribuída das vacinas e no acesso à vacinação pelo sul global, que teríamos o melhor seguro para o futuro. Mas os interesses dos gigantes farmacêuticos ainda falam mais alto do que a nossa saúde.

Regressando à questão dos pareceres sobre a vacinação infantil, a Direção Geral da Saúde (DGS) conseguiu criar uma enorme trapalhada e novamente perder o controlo do debate público. Havendo um grupo acirrado de negacionistas ávidos de novas polémicas, a DGS fez-lhes o dia ao esconder o parecer da comissão técnica de vacinação. Este órgão consultivo não toma decisões, dá a opinião à DGS que é quem depois decide. A DGS tem todo o direito de tomar decisões diferentes das opiniões dos órgãos consultivos - mas também devia ter a capacidade de, publicamente, apresentar os argumentos em que baseia as suas decisões. Ora, a pretensão de tornar sigiloso o parecer da comissão técnica é absurda e mostra mais fragilidade do que força, algo que é incompreensível. Até porque vai acabar por revelar o que quis esconder.

Como seria previsível, este tipo de situações é logo aproveitado por quem pretende contestar a vacinação. É isso que explica a ação da IL e do Chega e justifica a mobilização da direita sobre este tema: estão umbilicalmente ligados aos movimentos negacionistas do nosso país. Querem usar este episódio para resgatar da ostracização as posições antivacinas e disputar esse apoio para as eleições que se avizinham. Felizmente esse é um ato falhado: Portugal já mostrou que não vai nas vigarices dos grupos antivacinas ou dos partidos políticos que lhes dão cobertura. O nosso país está no topo do mundo das taxas de vacinação, os negacionistas até podem fazer muito barulho mas ficam a falar sozinhos.

A nova tentativa para intoxicar o debate público é inventando em Portugal o debate sobre a vacinação obrigatória. Já foi repetido à exaustão que é estúpido obrigar as pessoas a algo que elas já querem fazer, mas isso pouco interessa - quem ouvir a IL ou o Chega, ou até mesmo o PSD como aconteceu pela voz de Isabel Meireles em nome da bancada parlamentar, fica com a certeza de haver quem queira a vacinação obrigatória em Portugal. Criar o caos com mentiras e falsidades, semear desconfianças, dividir para reinar, é uma estratégia que só funciona quando conseguir a desmobilização. Lembrando Martin Luther King, o que preocupa não é o grito dos maus, é o silêncio dos bons.

O autor é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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