Supremo dos EUA mantém lei antiaborto do Texas, mas autoriza contestação nos tribunais

Juízes decidiram que os responsáveis das clínicas de aborto podem contestar a lei nos tribunais federais, o que estava em dúvida devido à forma com a lei foi feita. Mas a maioria conservadora permitiu que a proibição a partir das seis semanas continue em vigor.

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Manifestação a favor do direito ao aborto em Washington D.C. Reuters/JONATHAN ERNST (Arquivo)

Numa decisão recebida com sentimentos contraditórios pelas organizações de defesa do direito ao aborto nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal norte-americano permitiu, esta sexta-feira, que os responsáveis das clínicas do Texas possam contestar, nos tribunais federais, uma lei do estado que proíbe o aborto a partir das seis semanas — ao mesmo tempo que deixou a lei em vigor, até que o caso seja decidido pelos tribunais inferiores.

A lei do Texas, que está em vigor desde 1 de Setembro, ilegalizou o aborto no estado (sem excepções para casos de violação e incesto) a partir do momento em que é possível detectar as primeiras vibrações na região onde se formará o coração do feto, o que costuma acontecer por volta das seis semanas de gravidez.

Os opositores dizem que a lei prejudica de forma desproporcionada as adolescentes e as mulheres da minoria afro-americana, uma população com menos rendimentos do que a maioria branca e que representou 70% do total de abortos realizados nas clínicas do Texas em 2019.

Sem poderem recorrer às clínicas, muitas grávidas terão de se deslocar a estados onde é possível interromper a gravidez em condições de segurança, o que pode ser demasiadamente dispendioso.

Para além disso, os opositores dizem que a lei vai contra as decisões do Supremo Tribunal nas últimas cinco décadas, desde que o aborto passou a ser considerado um direito que os estados norte-americanos não podem limitar, de forma excessiva, antes de o feto poder sobreviver fora do útero, o que actualmente acontece por volta das 23 ou 24 semanas.

Denúncia dos cidadãos

Mas, antes que essa questão possa ser avaliada pelo Supremo, os juízes tiveram de se pronunciar, esta sexta-feira, sobre um assunto suscitado pela forma como a lei do Texas foi feita: em vez de instruir as autoridades oficiais do estado a fazer cumprir a lei antiaborto, os legisladores republicanos delegaram essa tarefa nos cidadãos.

Segundo a lei do Texas, qualquer pessoa que seja condenada em tribunal por participar num aborto — médicos, enfermeiros e outros prestadores de cuidados de saúde, e até um motorista de táxi que transporte a mulher para uma clínica — terá de pagar dez mil dólares (nove mil euros) ao autor da queixa; ao contrário, se o tribunal considerar que a acusação não tem qualquer justificação, o autor da queixa não tem de pagar nada ao acusado, que também não é ressarcido das custas judiciais.

O objectivo da lei é que os responsáveis e funcionários das clínicas do Texas se recusem a fazer abortos, com receio de irem à falência. E parece estar a funcionar: no primeiro mês após a entrada em vigor da lei, a 1 de Setembro, o número de abortos no Texas, em clínicas autorizadas para o efeito, caiu 50% em relação ao mesmo mês em 2020.

O que o Supremo norte-americano decidiu esta sexta-feira, com apenas um voto contra (do juiz Clarence Thomas, o mais radical na questão do aborto, dos nove que compõem o tribunal), foi que os responsáveis das clínicas de aborto do Texas têm legitimidade para tentarem travar a lei nos tribunais federais, acima do círculo de tribunais do estado do Texas.

Essa legitimidade estava em dúvida porque a lei não identifica as autoridades que têm de a fazer cumprir, o que deixava os possíveis queixosos — principalmente as clínicas de aborto — sem alvos para levar a tribunal. Esta sexta-feira, o Supremo decidiu que as queixas não podem, de facto, ser direccionadas a funcionários judiciais nem ao procurador-geral do Texas, mas podem ter como alvos os responsáveis dos serviços de regulação das clínicas.

"Demência"

A notícia de que será possível contestar a lei nos tribunais federais foi recebida com alívio pelos defensores do direito ao aborto, mas a segunda parte da decisão do Supremo — a de que a lei não deve ser suspensa até haver novas decisões dos tribunais inferiores — foi muito criticada pelos três juízes liberais.

“Este tribunal devia ter travado esta demência há meses, antes de a lei ter entrado em vigor”, disse a juíza Sonia Sotomayor, numa decisão assinada pelos juízes Stephen Breyer e Elena Kagan.

A lei do Texas é uma das duas leis antiaborto que estão em análise no Supremo Tribunal norte-americano, e que podem provocar uma alteração radical do entendimento sobre o aborto como um direito nos EUA.

No início do mês, a maioria de juízes conservadores no Supremo (seis, incluindo três nomeados pelo ex-Presidente dos EUA, Donald Trump) indicou que poderá validar, no Verão de 2022, uma lei do Mississíppi que proíbe o aborto a partir das 15 semanas.

Só um dos seis conservadores (o juiz-presidente, John G. Roberts) deu indicações de que não está disposto a ir ainda mais longe, e a devolver aos estados norte-americanos a autonomia para proibirem o aborto em qualquer circunstância e em qualquer fase da gravidez — o que deixou de ser possível em 1973, quando o Supremo impôs limites à intervenção dos estados.

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