O maior trunfo

Nunca poderemos rir sobre a perda de alguém mas poderemos rir sobre a presença dessa pessoa nas nossas vidas. E se sobrepusermos o riso às lágrimas, então ganharemos à subtração da vida.

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"O riso sai-me sempre como trunfo maior da minha cartola" Mag Rodrigues

Todas as coisas que me fizeram chorar e sobre as quais agora rio, se assemelham a um triunfo. Faço muitas vezes marcha atrás para usar este termo: triunfo ou vitória. Tenho demasiado respeito por aquilo que aparentemente derrubo, ou no olhar que lanço sobre o que ficou no passado, mas quando me rio, ouso dizer que ganhei à tristeza e aos dias de luto pelos quais já todos passámos.

Nunca poderemos rir sobre a perda de alguém mas poderemos rir sobre a presença dessa pessoa nas nossas vidas. E se sobrepusermos o riso às lágrimas, então ganharemos à subtracção da vida.

O riso sai-me sempre como trunfo maior da minha cartola.

Hoje mesmo lembrei-me do dia em que fui deixar a minha filha recém-nascida aos cuidados neonatais e entre o meu andar desconchavado de uma cesariana parida a custo (e sabe deus a que custos) e uma dor que me dilacerava a alma por a deixar longe de mim (depois de ter sofrido tanto para a fazer vir ao mundo), entrego-a num sítio onde tinha sido escolhida uma rádio de música aleatória para acompanhar os prematuros e os que ali ficavam ainda sem condições para esbracejar longe da mãe.

No momento da entrega levo-a nos braços, arrastada na minha camisa de noite sem brio, e naquilo que recordo como um instante dramático, ouço a música a ser gritada de um rádio e olho para o pai da minha filha e os nossos olhos ficam ainda mais assustados. Como se aquilo fosse determinante para o futuro dela.

Agora, neste instante, rio-me por me lembrar de nós ainda com essa dor pouco acomodada a irmos embora dali e eu a separar-me dele com uma dor maior – parecia-me maior do que a minha vida. E a rádio que ela ia ficar a ouvir na nossa ausência. E eu ali perto, mas longe dela na enfermaria cheia de ex grávidas que agora eram jovens mães mesmo que fosse (nalguns casos) o quinto filho. Mesmo que aquelas mulheres parecessem ter dado a volta à vida muitas vezes. O meu Big Brother das grávidas. “Temos de sair disto mais fortes” – disse eu quando me recompus da perda momentânea. Olhei para as outras, mais sabidas do que eu mas que ouviam o mesmo grito: “não bebam o chá em cima dos bebés que ainda os queimam!”. Eu só tinha o chá. O ‘bebé' tinha sido deixado alas antes. Restava-me agora a inquietação de olhar para o relógio e pensar quando a teria de volta. E que música estaria ela a ouvir.

É sobre isto que rio, sobre isto tudo. O chá que podia cair nos nenucos de carne e osso, a minha filha a ouvir canções de uma rádio aos gritos e eu apavorada como se tivesse 17 anos, tendo 36. Já era uma mulher e afinal sentia-me uma miúda. Concluo que há sempre uma altura em que nos sentimos mulher. Mulher de novo. Mulher pela primeira vez.

Na enfermaria onde incentivara as outras mulheres a vencer o Big Brother das grávidas, eu soluçava porque queria ir resgatar a minha filha ao antro das canções feias e trazê-la, ainda assim, para o campo armadilhado do chá das cinco (éramos oito na verdade). Rio-me outra vez. Rio-me de todos os momentos em que chorei. Há um momento sobre o qual não rio porque coabita

com a dor dos outros: enquanto eu me arrastei dez dias para aquela ala onde se lutava pela vida, havia pais que faziam centenas de quilómetros na expectativa de que o seu recém-nascido tivesse engordado dez gramas que fosse, e, muitas vezes, voltavam dali sem esse acrescento. De rosto lavado em lágrimas num regresso a casa que se faria em silêncio sem lugar sequer a canções feias. Eu ficava pelo menos a ver as outras mulheres para me sentir mais mulher.

Um dia entrei ali de lábios pintados e com um vestido bonito e levei a minha filha para casa. E o pai logo a embalou com canções bonitas.

Rio sobre tudo o que posso reverter, mas há perdas irremediáveis.

Às vezes estão dentro de nós para sempre.

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