A mulher da limpeza
Há dias ouviu na rádio que tinha morrido a mulher mais velha do mundo, até à data, claro. Tinha 124 anos e era filipina. Pensou como seria a alimentação dessa senhora - a alimentação é muito importante para a longevidade de uma pessoa.
Quase a completar 44 anos de vida, sabe, por experiência própria, que a idade não traz sapiência ou tranquilidade; pelo contrário, sente-se cada vez mais ignorante e inquieta. Nos últimos anos, talvez na última década, a imagem que lhe devolve o espelho é turva. Esforça-se por desembaciar essa imagem reflectida com acções concretas.
Mais do que tentar limpar o espelho, sabe que é preciso esfregar por dentro, até às vísceras das memórias que a embaciam. Fazer coisas que lhe dão alegria, mesmo as que são pequeninas, é o melhor método de limpeza: por exemplo, comer um gelado de morango a meio do dia, como se fosse uma criança a esbanjar a mesada às escondidas. E uma das vantagens de ser adulta é controlar a sua própria mesada.
Mesmo turva, continua a gostar de si. Aceita, embora não lhe seja possível permanecer assim por mais tempo. Luta contra a letargia de se acomodar a uma pessoa que, sendo ela própria, não é exactamente ela própria, digamos que é ela com medo. Sabe que é mais alta do que se sente agora. E tem a noção de que pode ser tão simples como endireitar a coluna vertebral. Ainda vai a tempo. Estamos sempre a tempo? Não sabe.
Há dias ouviu na rádio que tinha morrido a mulher mais velha do mundo, até à data, claro. Tinha 124 anos e era filipina. Pensou como seria a alimentação dessa senhora - a alimentação é muito importante para a longevidade de uma pessoa. Pensou como seria viver tantos anos. Possivelmente ver morrer os filhos, os netos e outros familiares próximos. Sobreviver a tanta coisa e a tanta gente. Ver o mundo mudar diversas vezes e perceber que tudo permanece à nossa passagem. Ela gostava de viver 124 anos. Mesmo embaciada, gosta de si própria, e por isso dos outros. Mesmo daqueles que contribuíram para o embaciar do seu reflexo no espelho e que, de alguma forma, se quiseram redimir. Sabe que os traz consigo em cada gesto.
Não tem descendência mas não se sente sozinha. Deixa que todas as memórias habitem o espelho. E não tem medo de morrer, sabe que ficará perpetuada nos filmes que fez e que ainda fará. Pelo menos durante uns tempos, enquanto os seus filmes forem vistos. Não tem medo de morrer, mas tem medo de outras coisas, e tem pena. Consome-se em remorsos por andar a viver com medo, quando devia viver em pleno. Tem de ter paciência e continuar a limpar por dentro. Nos últimos anos, sente-se a mulher da limpeza: limpa o que os outros sujaram em si.