As guerras entre irmãos são tão velhas como a humanidade

Quando estamos no limite, optamos pela estratégia que conduza o mais depressa possível à paz e ao sossego.

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"Sem darmos por isso, às vezes abrimos flancos entre os irmãos. E o ciúme é a acendalha de todas as guerras" @designer.sandraf

Querida Mãe,

Comecei a escrever esta Birra para dar aos meus filhos mais novos (e seus netos!!) a ideia de que estou muito ocupada e nem reparo que se batem por uma prancha de bodyboard com que brincam na sala neste dia de chuva. Finjo não ver porque sei que qualquer intervenção minha só vai piorar tudo!

Vou ouvindo as argumentações imbatíveis de que as crianças de 4 e de 6 anos são capazes e contenho com dificuldade o riso quando oiço frases que, vá se lá saber como estão, certamente, inscritas nos genes porque me lembro de as dizer — e de as ouvir — quando tinha a idade deles. Como é que é possível que uma criança ao levar um murro no braço se lembre de declarar que “Isso nem doeu!”, enquanto solta um risinho nervoso que denuncia bem como a magoou? Todas o fazem, suspeito que é universal.

Por aqui a discussão vai-se desenrolando naquele limite antes de alguém começar a chorar, e eu começo a dar uma no cravo e outra na ferradura para ver se consigo que pelo menos um deles se acalme. Reparo que tento apelar ao bom senso da mais velha, não porque ela tenha menos razão do que ele, mas porque o mini E. quando refila tem um guincho mais estridente e eu estou com dores de cabeça!

Começo a mandar umas “bocas”, e dou por mim a fazer uso de todos os clichés: “Isso vai acabar com alguém a chorar”, “Parem!”, “Se não param, eu… “, seguido de uma ameaça que sei que não vou cumprir. E, de repente, e repare, mãe, aqui está o benefício de não intervir, a mais velha toca num ponto fraco do mais novo, e ele sai-se com esta pérola: “Se parares de fazer isso eu dou-te um KitKat e podes ficar com a tua prancha que eu roubei.” Hahahah, ela pára imediatamente de discutir, e vão os dois procurar chocolates que nem sabia que existiam cá em casa, mas que os deixo comer de bom grado, aproveitando o final feliz para acabar de lhe escrever esta carta.

E sabe o que é mais curioso? É que com as gémeas nunca tinha passado por estas discussões furiosas entre irmãos, cometendo aquele erro comum de imaginar que resultava da boa educação que lhes dava. Santa ilusão. Foi a mesma que estes dois receberam e é o que se vê, por isso dou a mão à palmatória e alinho com os pais que se queixam de que estas guerras intermináveis têm impacto na sua sanidade mental.

Mãe, conte-me, e nós, discutíamos muito? Dicas?

Beijinhos


Ana,

Vai buscar o Antigo Testamento e lê a história de Caim e Abel. Na verdade, nunca me lembro bem de qual é o verdadeiro mau da fita, mas o que te estou a tentar dizer é que as guerras entre irmãos são tão velhas como a humanidade. E as dores de cabeça dos pais também. Ou seja, sim, vocês lutavam e discutiam, e como eram três iam negociando alianças uns contra os outros. Houve uma fase em que o teu irmão mais velho e a tua irmã mais nova se juntavam contra ti e te chamavam Madre Teresa de Calcutá, como se fosse um insulto, lembras-te?! Depois passámos à fase em que eram vocês as duas contra ele, e pelo meio houve mil variantes, nomeadamente nos momentos em que se uniam todos contra mim!

Com aquilo que aprendi com o tempo e, justiça seja feita, como o que me vais escrevendo nestas birras, sinto-me capaz de arriscar algumas “reflexões” e conselhos. Por favor, testa-os e depois diz-me se funcionaram porque os avós, tal como os psicólogos e os pediatras, têm sempre teorias perfeitas pela simples razão de que não têm de as colocar em prática, e sofrer as consequências.

1. Aceitar que, às vezes, ter um irmão é uma chatice, ter dois irmãos uma chatice ainda maior, e por aí adiante. O Eduardo Sá costuma dizer que o nascimento de um irmão corresponde, objectivamente, a um corte no ordenado, e ninguém gosta de passar a receber menos. O difícil é permitir que uma criança se queixe, porque essa queixa faz-nos sentir culpados (o que é absurdo, mas é assim mesmo), e depois, para afastar a culpa, queremos obrigá-los a reconhecer que lhes fizemos um favor. E fizemos, mas lá chegará o tempo da gratidão.

2. Meter na cabeça que as famílias felizes não são aquelas em que ninguém discute, muito pelo contrário. Claro que os temos de ensinar (e aprender) a manifestar a agressividade com boas maneiras, mas mais vale que se vá expressando aos bocadinhos do que rebentar um dia como uma panela de pressão.

3. Ajuda acabar com a conversa de que tudo é para “partilhar”, que os irmãos têm de ser “melhores amigos” 24 horas sobre 24 h, como se fossem um só (como os gémeos?!). O sentido de propriedade é inato, e ainda bem que os irmãos treinam em casa a negociar — ao que parece aqueles que não têm esse estágio doméstico têm mais dificuldade nas negociações inevitáveis na escola e na vida real.

4. Não “catastrofizar”, aprendi a palavra contigo, nem sei se existe. Pronto, fui eu quem comecei com o exemplo de Caim e Abel, mas felizmente não é por discutirem sobre quem é que vai à frente ou atrás no carro que se vão odiar no futuro — se a vida lhes correr bem compram um para eles e sentam-se onde quiserem! Idem aspas para o quarto, e para o comando da televisão.

5. Cultivar a relação com o mais “difícil”. Identifiquei-me completamente com a tua decisão de, em legítima defesa, favoreceres o do grito mais estridente. Quando estamos no limite, optamos pela estratégia que conduza o mais depressa possível à paz e ao sossego. Pensamos no curto prazo, não temos energia para mais. Tenho a certeza de que era por isso que os teus irmãos te chamavam Madre Teresa. Como sempre foste generosa e fácil, eu acabava por te pedir a ti para ceder, para fazer os recados, para encontrar soluções para os problemas. Na prática acabava a premiar os outros com menos chatices mas, na realidade, provavelmente transmitia a ideia de que havia um favorito, até porque recebias os elogios correspondentes.

Ou seja, sem darmos por isso, às vezes abrimos flancos entre os irmãos. E o ciúme é a acendalha de todas as guerras. Por isso, precisamos de ter cuidado suplementar com os filhos difíceis, com os que vão assumindo o rótulo, e que não sabem como sair dele. Como se resolve, quando ainda por cima irritam-nos e só apetece castigar? Cultivando a relação, procurando momentos em se estabelecem cumplicidades e pontes, em que se sente visto e amado. Acredito que se lhe dermos outras armas para atrair a nossa atenção, que não apenas as de implicar com os irmãos, ficam todos a ganhar.

Beijinhos e dá notícias.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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