Ómicron: ignorância ou hipocrisia?

O aparecimento de variantes que causem preocupação depende do número de replicações que o vírus se permite fazer. O número de replicações depende do número de pessoas infectadas. E o número de pessoas infectadas depende do número de pessoas vacinadas (inversamente, claro).

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"Todos os anos morrem nove milhões de crianças com menos de 5 anos no mundo (a covid-19 passou há dias os cinco milhões de mortos em quase dois anos)" Reuters/DADO RUVIC

Covid, África, variantes, falta de vacinas, injustiça, terceira dose para nós ou primeira dose para tantos? Todos nós temos ouvido estas premissas misturadas e baralhadas ao longo do último ano, e a aparição da variante Ómicron, aparentemente originária no Botswana veio relançar esta dança de afirmações “óbvias” por parte de tantos ilustres fazedores de opinião e na generalidade da opinião pública.

Não tenho qualquer prazer em provocar ou agredir opiniões contrárias mas acredito, com muita convicção, que este tipo de associação de ideias, que pode parecer fazer sentido à distância e a olho nu, se forem reflectidas com conhecimento de causa, só podem ser classificadas como ignorância, hipocrisia, ou pior ainda, o maior veneno da sociedade quando se aproximam eleições: demagogia.

O aparecimento de variantes que causem preocupação depende do número de replicações que o vírus se permite fazer. O número de replicações depende do número de pessoas infectadas. E o número de pessoas infectadas depende do número de pessoas vacinadas (inversamente, claro). Até aqui tudo certo, tudo de acordo. O continente africano apresenta números de vacinação preocupantemente baixos. O mundo tem apenas 42% da população com a vacinação completa (54% com a primeira dose), em África, apenas 27% dos profissionais de saúde estão vacinados, e só 7% da população africana está vacinada. Factos. E factos muito preocupantes. Também é um facto que uma das razões é a falta de vacinas para os países mais pobres, por falta de poderio económico para competir com os mais ricos. Até aqui todos de acordo.

Então o que é que me separa da opinião mainstream? Outros factos que vos convido a reflectirem. Primeiro, a vacinação não se resolve “só” com a vacina. Segundo, a realidade da saúde de tantos países africanos.

Então, para alguém estar vacinado não chega atirar com vacinas para um avião que vai para África. A logística de distribuição em países onde não há vias de comunicação razoáveis, a conservação na cadeia de frio altamente exigente para quem nem electricidade tem, a escassez grotesca de profissionais de saúde para as campanhas de vacinação... Tudo isto é infinitamente mais difícil de colmatar do que a existência da vacina. E o programa COVAX, das Nações Unidas, tem sido desapontante por isso mesmo. Do que tenho lido, os exemplos mais gritantes foram o Chade e o Benim, que há uns meses deitaram fora 90% das vacinas que lhes foram oferecidas por terem ultrapassado o prazo de validade.

Mas a questão da saúde global é bem mais elucidativa, digo eu com muita humildade e disponível para estar errado, se me provarem o contrário. Vou pegar na mortalidade infantil como exemplo, para que acompanhem o meu raciocínio. Todos os anos morrem nove milhões de crianças com menos de 5 anos no mundo (a covid-19 passou há dias os cinco milhões de mortos em quase dois anos). A quase totalidade em termos percentuais destas mortes infantis ocorre em países subdesenvolvidos. Sabe-se que cerca de 70% destas mortes são tratáveis ou evitáveis (malária, gastroenterites, infecções respiratórias, etc.) e cerca de metade do total de mortes infantis tem como corresponsável a subnutrição, ou seja, a fome.

E quando em Portugal se fala de violência obstétrica, mesmo tendo serviços de saúde de excelência, nos países mais pobres morrem 800 mulheres por dia, durante o parto, por causas facilmente evitáveis se tivessem cuidados de saúde. Isto não é “whataboutismo”! Isto é para que se coloquem nos problemas de saúde dos países mais pobres e, depois de reflectirem, me digam em que nível de prioridade colocariam a vacina da covid-19? Há dias foi anunciada a primeira vacina (implica quatro doses) contra a malária, que pode salvar 300 a 400 mil pessoas por ano, na sua maioria crianças, mas foi uma notícia de rodapé. E certamente não chega à bocas dos “opinadores” profissionais.

Nós, os ricos, somos uns hipócritas, diz-nos o nosso passado e o presente, tendo eu esperança que o futuro vá colmatando a nossa ignorância e por consequência a nossa hipocrisia. Mas tentar resolver a hipocrisia dos ricos para com os pobres, a propósito da covid-19, só pode ser explicado pela nossa ignorância, ou então, é a hipocrisia das hipocrisias.

Saúde global? Justiça? Olhar sobre os maiores problemas da humanidade? Sim, muito, por favor. Mais, mais e mais, muito mais. E então, vejamos em que lugar nas prioridades fica a vacina da covid-19 em países onde se morre de fome. Solução? Pensar mais vezes no mundo como um todo, e não só quando nos dá jeito.

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