Reeleição: a fracassada experiência brasileira

FHC se reelegeu, Lula se reelegeu; Dilma se reelegeu. Há clamorosa ruptura no princípio da igualdade de forças eleitorais, sendo a posse da máquina pública vetor de gritante favorecimento político ao ocupante do cargo.

O instituto da reeleição fracassou. Não podemos mais ignorar o fato em sua eloquente realidade. Sim, os quase 25 anos de reeleição no Brasil demonstram que tal possibilidade política foi instrumentalizada em favor do fisiologismo desbragado, das bases partidárias de ocasião e de volúveis maiorias parlamentares, tendo como fonte de sustentação a estúpida sangria de recursos públicos por caminhos nebulosos. Ou seja, a malsucedida experiência brasileira revela que a reeleição fragilizou a qualidade de democracia e comprometeu a verdade da vontade popular.

Ora, o casuísmo é incapaz de gerar soluções duradouras. A tentativa homenageou a circunstância e, não, a cultura política estabelecida. Sem cortinas, aquilo que foi posto em prática para possibilitar a reeleição de FHC [Fernando Henrique Cardoso] - e a consequente consolidação do Plano do Real - perdeu essencialidade democrática e amparo republicano. Não há dúvida de que a medida pode ter sido movida por ideias nobres, mas mesmo a nobreza de intenções pode se mostrar errada no curso do tempo, a ensejar pertinente aperfeiçoamento institucional.

Por oportuno, convém lembrar pontual excerto da justificativa apresentada à proposta de emenda constitucional: “Entendemos que o amadurecimento do processo democrático passa pelo instituto da reeleição, entendido este aqui como um fator importante da constituição de corpos administrativos estáveis. À população brasileira deve ser dada a opção de decidir pela continuidade de uma administração bem sucedida, como já acontece na maioria dos países. Além disso, cria-se, com isso, a efetiva possibilidade de se levar a efeito o cumprimento de metas governamentais de médio prazo, o que se torna praticamente impossível no sistema atual”.

Como se vê, a reeleição teve como princípio fundante a estabilidade da administração para fins de continuidade de projetos políticos exitosos de médio prazo. Todavia, a razão da descontinuidade de políticas de Estado virtuosas não estava – e não está - na impossibilidade de reeleição, mas na carência de homens públicos de envergadura que, antes de miúdas questões partidárias, atuam à luz dos legítimos interesses da Nação, exaltando a ética da responsabilidade e a decência de procedimentos. Portanto, como não atacamos a causa, o problema persiste e pulsa.

Diante dos sinuosos traços normativos, a questão foi judicializada, impugnando-se, em especial, a desnecessidade de desincompatibilização de cargos aos candidatos em busca de reeleição. O Supremo, por maioria, rejeitou a ação direta de inconstitucionalidade, vindo a firmar entendimento no sentido de que “não se tratando, no § 5º do art. 14 da Constituição, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 16/1997, de caso de inelegibilidade, mas, sim, de hipótese em que se estipula ser possível a elegibilidade dos Chefes dos Poderes Executivos, federal, estadual, distrital, municipal e dos que os hajam sucedido ou substituído no curso dos mandatos, para o mesmo cargo, para um período subseqüente, não cabe exigir-lhes desincompatibilização para concorrer ao segundo mandato, assim constitucionalmente autorizado” (j. 26.03.1998). 

Em boa hora, o eminente Min. Marco Aurélio [juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil, entre 1990 e 2021] abriu divergência, vindo a assentar que “princípios basilares da Carta de 1988 estão em jogo, principalmente presente a circunstância de a matéria dizer respeito à eleição para cargos do Executivo; eleição que se pretende, conforme está na Carta, ocorra com a igualização das condições dos diversos candidatos. E já temos a lei, atacada mediante esta ação direta de inconstitucionalidade, a criar certas prerrogativas que iniludivelmente consubstanciam uma vantagem para aqueles tentarão a reeleição”.

Apesar da manifesta quebra da paridade de armas eleitoral, a reeleição - sem necessidade de desincompatibilização - foi tida por constitucional. A partir daí, deu no que deu: FHC se reelegeu, Lula se reelegeu; Dilma se reelegeu. O histórico opaco demonstra que há clamorosa ruptura no princípio da igualdade de forças eleitorais, sendo a posse da máquina pública vetor de gritante favorecimento político ao eventual ocupante do cargo. Ou será que as reeleições presidenciais verificadas no Brasil se deram pelo mérito e virtude dos reis e rainha de plantão? Ainda, não será a reeleição a causa determinante do insistente apelo ao impeachment perante governos ineptos, corruptos ou incompetentes?

Entre silêncios de oportunismo ou conveniência, a sabedoria se levanta e faz eco à autoridade da razão pensante. Em página política clássica e não menos fundamental, a inteligência superior de Assis Brasil bem pontou que “com a irreelegibilidade imediata poderemos privar-nos da prolongação de um bom governo, mas compensa-nos largamente a segurança de estarmos livres da perpetuação dos maus”, vindo a concluir que aquele que se quiser fazer reeleger “abandonará em breve o cuidado da causa pública, para se dedicar durante todo o período do seu governo a arquitetar a encenação da futura tragicomédia eleitoral”.

As letras acima do notável homem público gaúcho são de 1934, mas parecem escritas sobre o hoje. O tempo passa, sendo incapaz de apagar o brilho das verdades imortais. Ironicamente, no cair do sol, tudo leva a crer que o Brasil gosta mesmo de ser governado por vivas mentiras.

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