E no fim o reencontro

Naqueles momentos, eu voltava a encontrar a mulher que perdeu o marido quando ainda era praticamente uma menina e que, com um esforço que mal conseguimos imaginar, conseguiu sozinha criar os dois filhos. “E são os dois doutores”, dizia-me.

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EPA/ANGELO CARCONI

Na primeira vez que entrei no lar, ela estava sentada num cadeirão castanho, toda vestida de preto, a tricotar com linhas e agulhas imaginárias. Confesso que não a reconheci de imediato, mas quando levantou os olhos e me encarou percebi que aquela senhora de cabelos brancos e pele enrugada era a mesma mulher que me habituei a ver como um poço de força durante a minha infância.

E depois ela sorriu e chamou-me. “Eduarda, anda cá”, disse-me. E eu fiquei sem saber se devia corrigi-la e dizer que Eduarda é a minha mãe ou se o melhor era acudir à chamada e pronto. Acabei por escolher a segunda opção. “Estás a ver este casaquinho que estou a fazer?”, perguntou-me então. Acenei com a cabeça. “Vê lá se o queres para a tua Carmen.”

E foi aí que eu não aguentei e tentei trazê-la à razão. Que a Carmen era eu, que diziam muitas vezes que era a cara da minha mãe, mas que a verdade é que já tinha quase 30 anos e a minha mãe roçava os 70. Ela riu-se com vontade e não desarmou. Pois então, se me conhecia tão bem desde criança, como é que eu queria agora convencê-la de que era uma menina que, na cabeça dela, tinha pouco mais de dois anos?

Desse dia para a frente, até ao dia em que ela partiu, fui muito mais vezes Eduarda do que Carmen. Às vezes, em rasgos de lucidez, sabia realmente quem eu era e perguntava-me pela minha mãe e pelas minhas tias. E naqueles momentos eu voltava a encontrar a mulher que perdeu o marido quando ainda era praticamente uma menina e que, com um esforço que mal conseguimos imaginar, conseguiu sozinha criar os dois filhos. “E são os dois doutores”, dizia-me. “Têm uma vida boa lá em Lisboa, sabes? É por isso que vêm aqui pouco.”

A verdade é que eles até iam muitas vezes visitar a mãe. Pelo menos um dos filhos vinha sempre a meio da semana e em todos os fins-de-semana aparecia pelo menos um deles, quando não os dois. Mas para ela, mãe que os criou sozinha, aquele tempo de visita parecia-lhe uma mão-cheia de nada.

Um dia, quando cheguei para o meu turno, o cadeirão onde habitualmente se sentava a tricotar roupinhas imaginárias, mesmo de frente para a porta de entrada, estava vazio. Nesse dia não a tinham conseguido levantar. Fui observá-la e fiquei alarmada com o que vi. Telefonei à médica do lar que veio com uma rapidez pouco habitual e que depois da avaliação me disse “temos de avisar os filhos de que a contagem decrescente da mãe acabou de acelerar”.

Nos dias seguintes, os filhos e netos voltaram a Vendas Novas. Queriam estar perto e pediram para ser chamados caso percebêssemos que o momento se aproximava. E, de facto, foi o que aconteceu. Quando a auxiliar da noite fez a ronda pelos quartos, pouco passava da uma da manhã, percebeu que a senhora já agonizava e telefonou aos filhos.

A vigília duraria até de manhã, poucos minutos antes de eu entrar ao serviço. Quando cheguei, estavam eles de saída, todos de expressão tranquila e sem lágrimas. Como nestas coisas não há palavras certas e nunca sabemos o que é melhor dizer, perguntei apenas: “Já está?” E o filho mais novo, que me conhecia desde menina, respondeu-me que sim. E depois acrescentou com um sorriso: “Antes de morrer, ela ainda abriu os olhos e tenho a certeza de que nos viu. Eram mesmo os olhos dela, brilhantes, não era aquele olhar perdido dos últimos tempos. Era ela outra vez.”

E eu tenho a certeza de que sim. Que a Rosa abriu os olhos nos momentos finais para se reencontrar com os filhos antes de partir. Mas, mais do que isso, para que os filhos a reencontrassem. E para que soubessem que lá do outro lado ela estaria com eles. Exactamente como sempre esteve durante a vida.

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