Intimidade e violência: quando o amor atraiçoa

Ainda há um longo caminho a percorrer para combater este fenómeno que deve ser visto como uma violação grave dos direitos humanos, podendo entender-se como qualquer acto, omissão ou conduta que serve para infligir danos físicos, sexuais e/ou psicológicos, directa ou indirectamente.

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"A redução da violência contra as mulheres só poderá ser conseguida através de uma intervenção em rede, multidisciplinar e coesa" @petercalheiros

No dia 25 de Novembro assinala-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres. O conceito de violência contra as mulheres vai além da violência perpetrada no espaço doméstico, e inclui todas as agressões a que as mulheres são sujeitas, quer no espaço doméstico, quer nos espaços públicos, nas instituições e no trabalho, incluindo o tráfico sexual, o assédio, a discriminação, etc..

Centrando-nos na violência doméstica, perpetrada pelo companheiro, este problema multidimensional atinge proporções tais que ano após ano, continuamos a registar um aumento do número de casos e a dura realidade de mulheres de todas as condições e estatutos sociais, podendo variar em termos de severidade e de tipologia, ou seja, abuso sexual, abuso físico, abuso psicológico/emocional.

Ainda há um longo caminho a percorrer para combater este fenómeno que deve ser visto como uma violação grave dos direitos humanos, podendo entender-se como qualquer acto, omissão ou conduta que serve para infligir danos físicos, sexuais e/ou psicológicos, directa ou indirectamente, por meio de enganos, ameaças, coações ou qualquer outra estratégia. Tem como objectivo intimidar a mulher, puni-la, humilhá-la ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu género sexual ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental e moral ou abalar a sua segurança pessoal, auto-estima ou a sua personalidade ou diminuir as suas capacidades físicas e/ou intelectuais.

As agressões compreendem a violência física — bofetada, empurrão, murros, bater —, a violência sexual — coerção para ter relações sexuais, toques indesejados, violação —, e os maus tratos emocionais — insultos, difamação, controlo e humilhação.

O reconhecimento público da violência contra a mulher como um grave problema social tem crescido e alguns factores têm contribuído para a maior atenção a este fenómeno, como a redefinição do papel das mulheres na família e na sociedade, a maior abertura ao exercício dos seus direitos individuais e os testemunhos de vítimas, algumas delas figuras públicas. Porém, ainda há muita tolerância nos discursos sociais e nas atitudes face à violência, tanto da parte de quem assiste como das próprias vítimas. Um exemplo é a relativização da violência encarada como “menos grave”, como um empurrão, a impulsividade ou a agressão verbal. Frases como: “Fizeste por merecer”; “A culpa é da bebida”; “Foi só uma bofetada” – são muitas vezes proferidas pelas pessoas próximas da vítima mas não podem ser perpetuadas e as denúncias precisam assumir um papel mais preponderante na sociedade de modo a evitar a escalada e fins trágicos.

É sabido que antes de a situação culminar em homicídio, muitas vezes, a vítima pôs em marcha esforços para obter ajuda, no entanto, o sistema legal não foi capaz de travar o agressor. Por outro lado, a voz dos agressores também espelha a tolerância, banalizando a violência, pelo facto de sustentarem crenças de auto desculpabilização, atribuição externa da culpa e minimização do dano causado à vítima.

A violência poderá evoluir em ciclos de duração e frequência variáveis, começando pela tensão marcada por divergências de opinião, por exemplo. De seguida surge a agressão verbal, psicológica, física ou sexual, passando a negação dos efeitos da violência e por fim, a “lua de mel”, em que o agressor faz promessas, dá presentes e aproxima-se de forma afetuosa. Consoante as fases do ciclo, a mulher poderá não exprimir as mesmas queixas e desejar as mesmas coisas. Este ciclo e a manutenção da mulher nesta relação abusiva mantém-se pela esperança de mudança do parceiro, pelo afeto que a mulher ainda nutre pelo mesmo, pela falta de condições de sustento e de apoio familiar e social, pela vergonha e pelo medo de que as ameaças se transformem factos.

A culpabilização e a responsabilização assumidas pela vítima no contexto do ciclo de violência são outros factores que ajudam a compreender o motivo pelo qual ela entra e sai da relação abusiva tantas vezes.

As consequências na mulher são várias: da violência física, violência sexual e psicológica podem resultar múltiplas fraturas, hematomas, queimaduras, mordeduras, cortes, danos ao nível da audição e da visão, ansiedade, sentimentos de culpa, depressão, consumo de álcool, perturbação de stress pós-traumático, perturbações cognitivas e da memória (por exemplo, confusão mental, imagens intrusivas sobre o mau trato, dificuldades na tomada de decisão), alterações na imagem corporal, desespero, sensação de vazio, redução do prazer, etc. É comum que os efeitos dos maus tratos se prolonguem depois da cessação da violência.

A redução da violência contra as mulheres só poderá ser conseguida através de uma intervenção em rede, multidisciplinar e coesa. Devem ser movidos esforços das instituições públicas e privadas, nas áreas da justiça, saúde, educação, serviços sociais, e políticas públicas, como uma causa de toda a comunidade e de toda a sociedade, desde os mais novos aos mais velhos. É preciso mudar crenças e discursos sociais promotores de condutas violentas e, em alternativa, estimular relações de género paritárias promovendo a autonomia e a resiliência das mulheres.

As crianças devem ser protegidas atendendo ao impacto negativo que a exposição à violência doméstica constitui no seu desenvolvimento. Devem ser promovidas competências relacionais e competências de resolução de problemas junto das crianças e jovens que lhes permitam lidar com situações de conflito sem recorrer à violência. Os serviços que fazem atendimentos e os seus agentes precisam de formação séria e adequada à esta realidade. Acções de formação pontuais não bastam, é urgente a sua continuidade numa lógica de actualização e de monitorização, sobretudo com conteúdos com aplicabilidade eefectivae não com teorias que não se encaixam na nossa realidade.

Ajudar estas mulheres a lidarem com o impacto desta situação traumática passa também por reconhecer e validar a sua experiência, escutando a sua história de modo a compreender as suas reações emocionais e comportamentais, os seus medos e dores, sem aumentar o seu sofrimento.

Se precisar de ajuda procure a APAV da sua zona de residência.

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