As cidades são dos e para os homens

As raízes do patriarcado, visíveis no planeamento e urbanismo, não simbolizam somente o falhanço da sociedade, mas igualmente um falhanço na nossa própria imaginação. Por outro lado, a cidade puramente matriarcal não será necessariamente a resposta, mas no mínimo deverá planear-se a cidade, indo ao encontro dos sonhos, ambições e energia de quaisquer grupos, independentemente do género.

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19 horas e 45 minutos na Avenida Duque de Ávila, em Lisboa. Alice sai do emprego. É Inverno, o Sol há muito que se pôs, e a rua – pouco iluminada – não desvenda com nitidez a voz rouca de um homem que a interpela. Pergunta-lhe para onde vai, se quer companhia e remata dizendo: “És bonita.”

Se este encontro fortuito tivesse ocorrido com as amigas Carrie, Samantha, Charlotte e Miranda, do alto da nossa normalização e romantização deste tipo de abordagem, acharíamos que era só mais um episódio cómico da série O Sexo e a Cidade. Mas para Alice não. Foi apenas pânico. E por isso correu e encontrou refúgio na estação de metro.

As cidades são dos – e para os – homens cisgénero heterossexuais saudáveis. Todas as cidades que conhecemos foram pensadas, desenhadas ou construídas por homens. De acordo com informação do Banco Mundial, apenas cerca de 10% das mulheres ocupam cargos de chefia em gabinetes de planeamento e arquitectura, e isso reflecte a anatomia física e sensorial das cidades.

As cidades, fálicas e rígidas, reflectem-se em obras arquitectónicas emblemáticas como a Torre Glòries, em Barcelona, ou a 30 St Mary Axe, em Londres – Gherkin de Norman Foster – exemplos simbólicos, porém evidentes, do preconceito de género insidioso e penetrante patente no espaço urbano. Por outro lado, quando Zaha Hadid propôs um estádio com uma forma semelhante à de uma vulva, para o Mundial do Qatar em 2022, criou-se imediatamente uma enorme discussão e polémica.

As raízes do patriarcado, visíveis no planeamento e urbanismo, não simbolizam somente o falhanço da sociedade, mas igualmente um falhanço na nossa própria imaginação. Por outro lado, a cidade puramente matriarcal não será necessariamente a resposta, mas no mínimo deverá planear-se a cidade, indo ao encontro dos sonhos, ambições e energia de quaisquer grupos, independentemente do género. A cidade inclusiva.

O planeamento e design urbano sempre se centraram em dar respostas a usos actuais do espaço, bem como criar oportunidades para novos comportamentos e utilizações. Assim sendo, de que forma o planeamento urbano poderá potenciar a igualdade de género?

Segundo a organização não-governamental Stop Street Harassment, 81% das mulheres já sofreram assédio na rua, fruto da sociedade misógina, da fraca iluminação das ruas, criando uma atmosfera urbana insegura. Uma possível via para solucionar estas dinâmicas de poder passará pela melhoria da trindade: 1) Ocupação de espaço público; 2) Representatividade autêntica; 3) Remoção da percepção de medo.

Existem algumas iniciativas célebres como a colocação de outdoors no metro de nova-iorquino, denunciado a prática (intimidatória) do manspreading. Em algumas cidades, designers reinventaram o “homem” da sinalética da passadeira, dando-lhe mais curvas, para aumentar a representatividade simbólica da mulher na cidade. A organização Hollaback criou uma plataforma global para mulheres e comunidade LGBTQ+ reportarem e mapearem as suas histórias e experiências de assédio. É vital pensar-se em soluções que condenem a estereotipagem ou tokenização, e que permitam o espírito de pertença e comunidade no espaço urbano.

Nos anos 80, a socióloga inglesa Gill Valentine desenvolveu um estudo em que concluiu que as mulheres se sentem vulneráveis em locais com determinadas características físicas – pouca iluminação, isolados, remotos, sem população e com visibilidade reduzida. Concluiu ainda que as mulheres tendem a criar imagens mentais de espaços com características que as fazem sentir inseguras, como estratégia de sobrevivência, a fim de os evitar.

O desenho urbano deverá corresponder à percepção de segurança, quer seja sistémica ou experienciada. O espaço urbano reflecte, reproduz e perpetua os estereótipos de género, centrado no homem, tornando esse ambiente hostil para a mulher. Deste modo é essencial incluir a perspectiva feminina e das minorias de género no desenho das cidades e comunidades, tornando-as harmoniosas e empáticas.

Pela Sarah Everard, pela Alice, por todas e por todos.

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