Modernidade líquida

Makas de uma angolana (Primeiro Intervalo) A Lura, como Heráclito, lá continuou a noite a dar-nos lume. Ela com a filosofia na ponta da vida e nós a pedir mais uma música na ponta da filosofia. Há quem viva com pouca coisa.

Tinha os dois bilhetes impressos guardados na mica, debaixo do colchão da segunda gaveta da cama de solteira, na casa da minha mãe. Comprei-os em finais de outubro enquanto a esperava descer do elevador com as análises para dali irmos à médica. – “É desta que me levas à Lura? Não vais fazer como na Eneida Marta?” Desliguei para ligar “directo à cabeça” e www vendas online, dando continuidade à revolução dos gestos imposta por estes últimos anos a somar o sumir.

– Não te farei a vida fácil – Afirmava a voz lá atrás naquela velha insistência de pôr à prova os momentos que me beijam a felicidade. E eu, a sentir que o joelho esquerdo denunciava que lá vinha mais uma para acrescentar à tradição das pequenas coisas feitas de tempestades, por sim por não cheguei a casa dela, imprimi os bilhetes e guardei-os no primeiro sítio que me os fizesse esquecer. Se eu perder a memória a desgraça não se vai lembrar de os recordar, certo?

Chegava o dia 12 sem contrariedades virológicas quando acordei e li a mensagem – “Ligas para combinarmos para logo à noite?” – Não chovia. O táxi também não se demorara. Havendo “estrada para andar” também assim havia trânsito…

Vinte e uma e trinta. – “Estou a fazer a Rotunda, mesmo a chegar.” – Vinte e uma e trinta e sete e lá estava ele encostado ao candeeiro em frente à porta dos artistas do Nacional, qual Sinatra numa noite em Lisboa, e eu a descer do táxi e a certificar-me que tinha trazido a mica com os bilhetes que finalmente já não estavam no lugar que a memória esqueceu. Um abraço de sôdade. Ele velho, eu gorda, num presságio do que haveria de contar a Lura naquela noite, como Heráclito, mas à moda dela. Ainda a metros do Coliseu e quase a embater numa fila parada ele balbucia – “Mas será que isto é para o concerto?” – Era. Continuámos. E como é que está a tua mãe? E os teus pais? Não trouxe o carro porque os miúdos ficaram com ela. Íamos nisto quando alguém veio avisar que tínhamos de ter o certificado à mão – “Certificado? Mas eu não tenho certificado. Não me avisaste que era preciso essa cena do certificado.” – Um olhar a crescer em direção ao outro e os dois em estado de choque sem que nenhum se denunciasse. Eu a dizer-lhe para ter calma, que a mim já me tinha acontecido o mesmo, que bastava ele ter internet no telemóvel. – “Se não tiveres usas o meu.” – Ele a perder-se e eu sem o encontrar – “Podíamos ir à farmácia” – e os dois a darmos por nós a olhar em volta, a perceber que não havia farmácias, eu outra vez a tentar não me denunciar, a insistir com o telemóvel e ele lá foi ao www enquanto eu, sôfrega, continuava a apontar é esse, é esse! – “Mas não ponhas os números mal, tem atenção.” O www foi pelo wc. “Erro. Tente daqui a quatro horas. Obrigada. Modernidade líquida”.

– Desta vez ficas tu com a Eneida Marta – “Nem penses nisso, eu sozinha não vou. Disfarça, faz de conta que não percebeste. Mas agora somos culpados pelo SNS não funcionar?” – À porta a fiscalização da licença do isqueiro, Salazar tem muitas vidas. Uma senhora a tentar vender dois bilhetes, outra a murmurar, a alertar em surdina: – “Têm que ir à rampa.”

Subimos. Percebemos que ali se passava alguma coisa, mas que não, não era maconha, eram testes rápidos vendidos à dealer por alguém que alguém sabia quem era, só faltava perceber quem. Descoberto o homem do chapéu, comprado o teste, seguiu-se o tcham, tcham, tcham, tcham. Bora. Entrámos. Dois passos e estávamos no Coliseu, certos de que “o que lá vai já deu o que tinha a dar”. Terá sido algo parecido com o que sentiram os portugueses na estreia d’ O Último Tango em Paris.

Para lá dos trinta minutos o sinal dá-se com a guitarra a ressuscitar Orlando Pantera e Na ri ná como no cinema, a entrar pelas traseiras. Rapport e um duplo flash back. No palco rodava a vida dela, nas cadeiras a rodagem fazia-se com as nossas. Com a minha, com a dele, com a das músicas. – “Lembras-te quando viemos ver a Cesária?” – Três risos depois já ela lá estava: Cize, um charuto e um copo para o longo caminho até São Tomé. Contados os primeiros temas, Lura colocou as legendas:

– Mudei a banda toda. Não me digam que não houve ninguém a sair diferente depois disto.

Sairemos. Uns a acenarem às luzes dos holofotes, que só sobrevivem quando em cima deles, outros a teimar que é às escuras “que o caminho se faz/ entre o alvo e a seta”. Há quem venha igual, a cultivar do mesmo ódio, a apontar o dedo às mesmas feridas, a repetir os erros que foram dos outros, a arrancar as crostas. Nós na amizade não mudámos nada. Como no cinema, o planeado era manter sempre o guião e trabalhar naquela cena que sempre foi a de até ao final mantermo-nos juntos. E lá vão trinta anos a teimar na amizade, a “obra-prima à escala mundial”. Uma amizade cheia de sombras, cassetes piratas, CD’s riscados. A tresandar cerveja ao final da noite, a aceitar que, enfim, “o vinho não era bom” e em outras alturas deixarmo-nos ficar mesmo quando “a banda não tinha tom”, mas sempre a resistirmos no nós, conhecendo-nos profundamente e rindo sem pudor no jogo de adivinhar que a tua borbulha aqui vai nascer antes das outras. “Filósofos sem arte”, nunca da amizade saiu o “obviamente demitido”. E sem que nenhum de nós precise de posar para a fotografia do olha eu e os amigos, somos. Sobrevivemos à base dos dias de férias alternadas que fomos tirando um do outro. Eu era a galinha, mas ele teve os três filhos. Razão tinha John le Carré, “to observe attentively”. Nada é o que parece. Aprendido isto, eu, “que já tinha feito cerco”, e ele, “anulado as sentinelas”, lá nos fomos tornando mestres em ser tudo menos o que está à vista, numa deriva marxista de cobrar menos e não receber um tostão a mais.

A Lura, como Heráclito, lá continuou a noite a dar-nos lume. Cantava, numa e noutra letra, que “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”. Impossível, banhar-se duas vezes nas mesmas águas. Ela com a filosofia na ponta da vida e nós a pedir mais uma música na ponta da filosofia. Há quem viva com pouca coisa. “Há quem tenha os braços fechados/ Com beijo jurado/ …”, pois se esta vontade de viver falar mais alto, no dia 16 de dezembro, às 21h, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém lá estaremos nós a fazer o que mais queremos: a continuar por essa “estrada pra andar”

“Enquanto houver ventos e mares”. 

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