A UE endureceu as suas fronteiras, mas não acabou com os problemas

A partir do pico da crise de refugiados, em 2015, o sentimento geral e as políticas europeias inflectiram. Os direitos humanos são postos em segundo plano um pouco em todas as fronteiras externas, mas o caos e a desordem mantêm-se.

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Soldados das Forças de Defesa Territorial da Polónia em patrulha na fronteira com a Bielorrússia Reuters/TERRITORIAL DEFENCE FORCES

As fronteiras da Polónia, Lituânia e Letónia são hoje o palco do mais recente teste de stress à política de segurança externa da União Europeia, que há vários anos tenta alcançar um difícil equilíbrio entre os receios de um fluxo desordenado de centenas de milhares de pessoas em desespero, os sentimentos da maioria da população europeia que encaram a imigração como uma das principais preocupações, e o respeito por princípios basilares do direito internacional e da própria união.

A resposta das autoridades lituanas a um incremento sem precedentes de migrantes às suas portas, sobretudo iraquianos e afegãos, ilustra os eixos por onde o debate sobre a gestão de fronteiras na UE se tem deslocado nos últimos anos. Num primeiro momento, entre Junho e Julho, o país de 2,7 milhões de habitantes manteve a fronteira com a Bielorrússia, que se estende por 670 quilómetros, em funcionamento regular. Os migrantes que chegavam diariamente eram transferidos para os dois centros para requerentes de asilo existentes – acabaram por ser construídos mais três desde então – onde aguardavam o processamento dos seus pedidos.

Em pouco mais de dois meses, chegaram mais de quatro mil pessoas de forma irregular à Lituânia, segundo o Ministério do Interior, o que representa um aumento de 55 vezes em relação ao que havia sido registado no ano anterior. Num país sem qualquer tradição no acolhimento de refugiados, ou até de imigrantes em geral, depressa a tensão se instalou na sociedade. Bastaram alguns protestos e críticas da oposição para que o Governo alterasse o rumo.

Uma mudança legislativa rapidamente aprovada permitiu legalizar os push-backs, na prática a expulsão de migrantes que atravessam de forma irregular a fronteira sem que haja qualquer triagem. A medida constitui uma violação das normas do direito internacional que garantem a protecção de pessoas perseguidas politicamente ou provenientes de países em guerra. O Governo lituano usa o termo “redireccionamento” e encara-a como uma medida excepcional usada num contexto de confronto geopolítico com a Bielorrússia.

Nos meses seguintes, começou a ser edificada uma vedação ao longo da fronteira e foi estabelecido um perímetro nessa zona de acesso muito restrito, tanto a jornalistas como a organizações humanitárias. “Alertámos no Verão a UE de que não conseguíamos suportar este fardo, porque a alternativa seria abrir a fronteira e indicar a direcção para Berlim e Paris”, disse ao PÚBLICO na semana passada o vice-ministro lituano do Interior, Arnoldas Abramavicius, que garantiu ter recebido “compreensão total” por parte de Bruxelas.

Abrir ou fechar

A inflexão na resposta lituana à crise actual reflecte um problema que o analista da European Stability Initiative, John Dalhuisen, verifica como uma constante no debate sobre a política de fronteiras na UE. “A generalidade do establishment político europeu, e até a maioria das organizações de defesa dos direitos humanos, encaram esta questão como algo binário: as fronteiras ou estão abertas, e toda a gente pode entrar, ou estão fechadas, e ninguém pode entrar”, diz ao PÚBLICO.

Essa polarização está na origem da pressão social que nos últimos anos tem levado vários governos europeus a endurecer as políticas migratórias, arrastando as instituições europeias. “Se o público estiver confrontado com uma escolha entre [receber] todos ou ninguém, em todo o lado se irá escolher [não receber] ninguém. E fazem esta opção mesmo se não concordarem com os muros e com a crueldade que os push-backs quase sempre acarretam”, observa.

No início da década passada, o panorama era muito diferente. A pressão migratória na UE era muito inferior – em média foi concedida protecção a cerca de 88 mil pessoas anualmente entre 2009 e 2013 – e o discurso dominante era ainda assente na defesa dos direitos humanos. Dalhuisen lembra que até essa altura apenas havia algum tipo de barreira física nas fronteiras externas da UE nos enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla. “Até 2015 temos vários políticos europeus que insistem em dois pontos: a UE não tem nada a ver com muros; e os migrantes, refugiados e requerentes de asilo devem poder atravessar fronteiras”, afirma o especialista.

É nesse contexto que a chanceler alemã Angela Merkel faz no Verão de 2015 uma declaração que se repercute até hoje, ao defender a entrada no país de cerca de um milhão de migrantes vindos da Síria, fugindo à guerra civil. Dalhuisen considera que o “cálculo político de Merkel se revelou acertado”. “A Alemanha realmente foi bem-sucedida: não tem debates polarizados sobre o tema, ao contrário de França, por exemplo.”

A partir desse momento, porém, praticamente toda a UE sem excepções alinhou num endurecimento das fronteiras para tentar combater a imigração desordenada. Essa passou a ser a prioridade entre as políticas europeias, deixando as suas fronteiras ainda mais inatingíveis para os que procuram segurança ou, simplesmente, uma vida melhor.

Em 2016, é aprovada uma reforma muito abrangente que reforça o policiamento nas fronteiras terrestres e marítimas, com a criação da Guarda Costeira e de Fronteiras Europeias (EBGC), uma evolução da Frontex, a agência de gestão de fronteiras. O financiamento deste organismo é mais do que duplicado e as suas competências amplamente expandidas, podendo, por exemplo, entrar num Estado-membro sem a autorização do Governo. Punha-se em marcha o que hoje se conhece como “fortaleza Europa”.

Ao mesmo tempo, começam a ser erguidas barreiras nas fronteiras da Hungria e na Grécia, no Mediterrâneo as operações de resgate passam a ser criminalizadas e, no Reino Unido, o “Brexit” é vendido como a melhor opção para que os britânicos possam escolher que imigrantes podem entrar. “Os push-backs, que antes eram considerados uma violação impensável e óbvia do direito e valores europeus, são agora o mecanismo de controlo de migração por defeito em praticamente todas as fronteiras externas da UE”, sublinha Dalhuisen.

Acordos polémicos

Uma tendência que passou a servir como política europeia foi o estabelecimento de acordos com países terceiros, por onde passam rotas de migração, para travar o fluxo de pessoas. O caso paradigmático é o acordo alcançado em 2016 com a Turquia que foi responsável por uma queda acentuada do número de pessoas a chegar à Grécia nos últimos anos. A partir daí foram fechados entendimentos idênticos com outros países como a Líbia, Sudão e Níger.

Este tipo de acordo foi muito criticado por diversas organizações de defesa dos direitos humanos, que relatavam abusos contra os migrantes nesses países. Ao mesmo tempo, para garantir a segurança das suas fronteiras, Bruxelas tem estado disponível para financiar regimes autoritários, como a Turquia e o Níger, ou Estados sem viabilidade política, como a Líbia, dividida entre facções rivais.

Dalhuisen não descarta este tipo de solução, sobretudo olhando para as alternativas disponíveis, embora não defenda que a UE deva estabelecer acordos com qualquer tipo de país. “Uma externalização que exporte respeito pelos direitos humanos e protecção de refugiados é boa, a externalização que essencialmente acabe por transferir violações de direitos humanos é profundamente problemática”, explica.

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