Duas amigas

Olho agora para as fotografias ali tiradas e a retina entra em colisão com uma lágrima.

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Prefiro as viagens todas que ainda não fiz Mag Rodrigues

Manhã de nevoeiro cerrado. Está tanto frio que pensamos desenhar no nosso bafo as palavras que traduzem o que estamos a sentir. Os casacos cobrem-nos a juventude e disfarçam-nos o medo. Haverá medo quando nem 30 anos temos?

Vamos de barco, em cadeiras de plástico alinhadas, ver a Estátua da Liberdade. Ali está ela. Tantas vezes avistada que se sente vazia. Como eu e vocês agora: tantas vezes gastámos as palavras que nos sentimos expostos e de bolsos sem fundo, como se os mostrássemos do avesso, como se na verdade, não houvesse nada para mostrar. Mas isto seria outra conversa, outra viagem.

Agora estamos em Nova Iorque, também é Novembro. Está tanto frio!

Chegámos a medo a um hotel aonde o nosso amigo Paixão tinha passado dois meses a escrever: é um hotel de marinheiros. Atracam com aviso e fazem barulho. Acordamos durante a noite com os marinheiros embriagados que balançam no corredor como se estivessem no convés. Cantam e parecem esmurrar as paredes. Talvez seja de felicidade. Não me atrevo a espreitar.

Na rececção do hotel, o quadro de ardósia assinala as chegadas dos barcos. Ali, naquele lugar, há uma igreja aonde todos os que chegam e partem, podem ir rezar. Até nós, a qualquer altura, poderemos lá ir. E vamos um dia: sento-me e rezo a um Deus sem nome. O silêncio é divino. Parece que ainda o desconhecemos.

Fomos para Union Square descobrir o mundo. A história que ali se contava era uma amostra de contrafacção da que Patti Smith relataria em Just Kids, mas, de quantas viagens não precisámos para perceber isso? A vida quase toda?

O hotel de marinheiros recebe-nos com um quarto de cama desfeita e uma casa de banho suja. Há um desconforto que não se acomoda em nós chegadas de uma viagem que nos faz sentir estranhamente adultas. Estranhamente por nossa conta.

Pedimos para limparem o quarto. Mantemos a roupa que nos cobre a juventude disfarçando a insegurança de estar onde ninguém nos pode proteger.

Estou agora a lembrar-me dessa sensação de nos sentirmos incompletas para viver aquilo que vimos relatado nos livros.

Quando passarmos frente ao Chelsea Hotel, o bafo cortante onde podíamos reter palavras, empurra-nos para a objectiva. Queremos uma fotografia ali. A mão desembaraça-se da luva e os dedos enregelados vão esticar-se para disparar o gatilho da máquina fotográfica. Faremos o mesmo nas Torres Gémeas que ainda se mantêm seguras no nosso olhar. Olho agora para as fotografias ali tiradas e a retina entra em colisão com uma lágrima.

O mundo, ali visto por nós, é um filme a cores e em movimento. Somos tão novas na nossa primeira viagem a sério, que terá mais encanto na hora da chegada quando tivermos arrumado tudo o que de incómodo vimos e vivemos.

Estamos em Little Italy e entramos num restaurante que podia ter sido cenário de um episódio dos Sopranos: os homens ali presentes cercam-nos e depressa teremos de deixar a nossa refeição a meio quando somos convidadas a descer até um piso que não vemos.

Somos estranhamente novas nessa altura. Não posso dizer que a idade nos trouxe a segurança incondicional.

Olho para trás, para esta viagem, e sinto uma espécie de nostalgia. Falámos dela ao almoço, hoje, 25 anos depois.

Sinto-me feliz por fazer parte desse passado. Sinto no presente a maior vontade de viver o que ainda não está escrito ou descrito. Nem a Patti Smith bebendo a sua mug cheia de café quente consegue escrever esta sensação de querer agarrar o mundo: é de cada um, independentemente da temperatura do momento. Insisto neste desafio de agarrarmos o presente: nada me parece mais desafiante. Sim, o passado foi um lugar bonito que já habitámos, mas o presente, o presente é a casa que queremos ocupar não sabendo o que nos espera.

Prefiro as viagens todas que ainda não fiz. As divisões que nem sequer ocupei.

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