A saída de cena como actor pela esquerda baixa...

Trazendo a narração de um facto pessoal, transito-o para os outros factos, mil vezes mais importantes, do que (não) é o teatro em Portugal desde o início do século XXI: um verdadeiro buraco negro ideológico.

Mais de 48 anos depois de o fazer profissionalmente e de 54 contando o tempo de amador, a minha vida no teatro como actor terminará com “URRO” de Júlio do Carmo Gomes, numa encenação do Rui Spranger, já no Sábado, dia 27/11, no Porto. Podem acontecer, como até está previsto para dia 17 de Dezembro em Berlim, alguma(s) outra(s) sessão(ões), mas já só por razões muito fortes, como é a de ser essa última-última na cidade para onde se exilou o dramaturgo e esta, de dia 27, a última-última na cidade onde nasci. Esta opção de ‘despedida’ tem várias razões, mas desde logo resulta das inúmeras responsabilidades e necessidade de uma maior disponibilidade (que um encenador tem muito mais do que um actor) para os novos tempos que, felizmente, se avizinham para a Seiva Trupe; e onde, consolidado o que se prevê e a que me propus quando aceitei a passagem de testemunho, também não tem por horizonte mais de uns 7 anos para que não passe, por minha vez, a pasta a outro.

Mas mesmo tendo, nos últimos 40 anos, o meu trabalho centrado justamente como actor e director de companhia muitíssimo mais do que como actor, isto não deixa de ser uma sensação estranha. Fazendo-me nesta hora ainda mais sentido um poema do Herberto Helder quando diz que o actor é tremendo, ninguém ama tão rebarbativamente como o actor, que é um advérbio que ramificou de um substantivo… Pelo que, no dizer de Kantor, ele é mesmo, em cena, o retrato nu do Homem exposto a todos os perigos…

E, para adensar tudo isso, faço-o com aquilo que nunca tinha feito: um monólogo. Mas que traz dentro dele (desse extraordinário texto que é) o mais importante do tudo que eu tenho, já de tão pouco mais, para dizer. Nunca me identifiquei tanto com um texto. Nem mesmo com o Dr. Stockman em “Um Inimigo do Povo” de Ibsen, em que era muito forte essa tal identificação. Por isto, também, só uma circunstância muito excepcional me levaria a fazer outro texto. Acho que este, “URRO”, é-me definitivo. E, como disse ao seu autor, só tenho inveja de não ter sido eu a escrevê-lo.

Foi também bom o facto de ser num espaço (o Terrasse Elisabete do Café Lusitano, cedido com tanta amabilidade e carinho pelo Mário Carvalho) com uma lotação muito escassa, quer pelo grau de intimidade e relação directa, cara a cara, que o espectáculo pede, quer porque, assim, estive quase sempre com o espaço cheio, tornando menos desagradável a ausência de muitos a quem dei a mão ou iniciei mesmo, ou, desta ou daquela forma, seria natural terem estado em nome de supostas solidariedades de resistência cultural, mas não estiveram. E foi também surpreendentemente agradável que estivesse aquele que foi o meu Mestre, o Júlio Cardoso (tantas vezes afastados, tantas outras, como agora, mais fortemente aproximados, ‘comungantes’ mesmo do essencial); e que outros, com quem não contaria que sequer para isso tivessem tempo, tenham feito questão de lá ir. Ou o grupo de uma dúzia de sem-abrigo que, pagando o seu bilhete (sem esperar a ‘borla’, de que a maioria dos ‘intelektas’ está sempre pronta a esmolar), acolheram o texto como seu e representaram para mim muito mais do que os ‘penduricalhos’ dos 10 de Junho ou mesmo do institucionalizado 25 de Abril tornado de ‘excravos’; ou sequer quando se faz vénias ao monarca sueco, ao contrário de Sartre e poucos mais, que se souberam manter integralmente e coerentemente no não. Porque a carne viva daquele texto é mesmo escrita porque neste Mundo os humilhados e ofendidos – e excluídos – justificam quer as ‘acusações’ violentíssimas que o dramaturgo escreveu, quer a doçura para com os que vivem num casebre de um país chamado Portugal, depois de 50, 55, 60 anos passados a trabalhar, com um griso do caralho, que nem o mata-bicho da taberna do Augusto a escorregar pelo bucho abaixo o[s] aquecia[m] por dentro, como o Chico Francês, que ali se evoca com tanta doçura.

Mas assim como em palco, como actor, me é difícil ter mais para dizer, também como encenador se me esgotam as coisas que ainda quero dizer, vedadas que estão as muitas outras – a mim e a todos – pela falta de condições mínimas para sequer se formar um elenco que possa fazer, com todas as personagens, sem remendos dramatúrgicos (muitas vezes que não são mais do que remendos de condições de produção), um simples Shakespeare ou Ibsen ou Brecht ou mesmo muito do Gil Vicente ou do Calderón de La Barca. E, por isso, na solidão de um monólogo também me senti paradoxalmente bem, porque de há muito que os que persistimos no teatro para lá de modismos ou de passagem, vassalagem ou frivolidades, estamos sós. E só não digo orgulhosamente porque a palavra remete para uma figura sinistra da nossa História recente. Mas como no Se do Kipling sim, mantendo as convicções num Mundo a delirar para quem o louco [sejamos nós], continuando a crer com toda a força de alma nas nossas opções.

Assim, trazendo – julgo eu também pela primeira vez em papel de imprensa (ou ecrã de letra digital) – a narração de um facto pessoal, transito-o para os outros factos, mil vezes mais importantes, do que (não) é o teatro em Portugal desde o início do século XXI: um verdadeiro buraco negro ideológico, como se diz no texto, em que mesmo – prosseguindo inspirado com as palavras do monólogo – é o de uma geração, cujas lágrimas não enchem meia chávena de Nespresso…

É mesmo forte, sentido – e bom para mim – deixar como últimas palavras em cena que a nós só não nos decepam pernas, braços, língua, porque a nossa gangrena está bem guardada noutro sítio, à espera que os dias passem, concluindo, por aposição do encenador: fim de gravação.

Castro Guedes,
ao caso o actor

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