Uma versão moderna de Rapunzel para pais demasiado protectores

Quando a menina se tornou adolescente construíram uma torre muito alta para que não saísse assim, sem mais nem menos, pela porta fora.

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"Fico feliz que a Rapunzel não estivesse tão assustada e tão fóbica ao exterior que ainda conseguisse aceitar o desafio da avózinha" @designer.sandraf

Ana,

A tua querida avó-bruxa da casinha de chocolate tem para a troca uma história tradicional adaptada aos pais séc XXI. Interrompe tudo o que estás a fazer, que essa conversa do multitasking é uma treta, e concentra-te. Prometo que te conto uma versão com todos os estereótipos a que tens direito.

Era uma vez uma princesa. Filha única e muito desejada, concebida quando os pais já iam para os 40 anos, porque antes disso tinham-se dedicado a gerir as suas carreiras reais e a apetrechar o palácio com as mais recentes tecnologias. Baptizaram-na de Rapunzel, mas no dia-a-dia chamavam-lhe só “Minha Princesa”, e como nunca tinham convivido de perto com mais nenhuma criança deslumbravam-se com tudo o que fazia, certos de que a menina era sobredotada. E, desejando que não fosse limitada nas escolhas futuras e atingisse todo o seu potencial arranjaram-lhe os melhores professores do mundo, enchendo-lhe as horas do dia de actividades desafiantes. Dentro de casa, claro, porque os pais da princesa tinham muito medo que a chuva, o vento, as minhocas e a ansiedade psicológica provocada por eventuais encontros com lobos maus e ogres a traumatizasse.

Quando a menina se tornou adolescente construíram uma torre muito alta para que não saísse assim, sem mais nem menos, pela porta fora e quando leram nas redes sociais que a juventude estava perdida — até tiravam as máscaras e bebiam da mesma garrafa —, decidiram que o melhor era mesmo impedi-la de sair à rua. A Princesa não se importou nada, porque a bem dizer também preferia falar com os “amigos” através do telemóvel.

Aderiu ao TikTok com entusiasmo, e entretinha-se horas a fazer “cenas”, ganhando milhares de seguidores. Também punha muitos likes nos dos outros, sobretudo na conta de um rapaz, pelo menos era esse o “género” que assumira no perfil, que começou a retribuir a sua atenção.

Combinaram um encontro. Ao vivo, queria vê-lo em carne e osso, tocar-lhe, beijá-lo... De onde lhe vinham subitamente estes desejos estranhos? Os pais entraram em pânico, descarregaram apps, ouviram podcasts, seguiram influenciadoras para saber como deviam reagir e acabaram por dizer-lhe que era perigoso, que a incidência da covid crescera, a vacina protegia mas não completamente e prometeram que reconsiderariam depois do Natal.

A Rapunzel chorou e berrou, mas conformou-se. Não queria morrer. Nem pegar aos pais. Nem aos avós. Mas, por esses dias, chegou ao palácio a avó que embora já tivesse há muito tempo desistido de dar palpites, desta vez não resistiu a meter-se no assunto. O tempo não volta atrás, e coitadinha da sua única neta presa num torreão! E foi então que lhe sugeriu: “Rapunzel, por que não te pões a andar daqui para fora?!”

O olhar estupefacto da neta deu-lhe a certeza de que precisava mesmo de ser salva!

Ana, o resto da história tu conheces, a trança pela janela, a fuga e o viveram felizes para sempre…


Querida mãe,

Fico feliz que a Rapunzel não estivesse tão assustada e tão fóbica ao exterior que ainda conseguisse aceitar o desafio da avózinha (será que a aliciou com doces?).

Fico muito feliz que existam avós nessa história para mostrar aos pais e à Rapunzel que o mundo cá fora é maravilhoso e que os riscos de viver valem a pena!

Um dia escrevemos um livro de contos tradicionais adaptados ao século XXI? Pelos vistos temos ainda muito a aprender com eles.


No Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Mas, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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