Uma Transição casa bem com uma Reflexão

“Não se poderá acreditar, hoje, na sua profecia”, P. Hetzel (1863 ), editor de Júlio Verne.

O conhecimento do efeito de estufa na atmosfera começa no séc. XIX com várias contribuições. Entre eles, o nobelizado S. Arrhenius apresentou em 1896, no Philosophical Magazine and Journal of Science, a primeira quantificação do CO2 nesse efeito. Ao longo do séc. XX uma plêiade de autores (cientistas e engenheiros) foi apresentando trabalhos e avisos. Surgem as ciências e as engenharias do Ambiente. Em 2021, no séc. XXI, dois cientistas recebem o prémio Nobel nesta área. Dá para reflectir. Neste ano, a COP26 em Glasgow e a transição climática ocupam a comunicação social. Publicam-se críticas e exigências e as ruas enchem-se com protestos.

Cientistas apresentam diagnósticos e antecipam consequências perturbadoras. São exigidas medidas drásticas em poucos anos para evitar o colapso ambiental. A descarbonização e os combustíveis, a sobriedade energética e os edifícios, a justiça climática, a sustentabilidade ambiental e os processos industriais, a mudança na mobilidade e nas mentalidades, a carne e o metano a evitar e a água a faltar para poupar, ou em excesso para evitar. Tudo isto é pouco e parece atrasado. É difícil não estar de acordo. Os adultos parecem estar ultrapassados, mas é compreensível que os adolescentes abracem causas que consideram perfeitas e sejam radicais a pedir soluções. Simplificando assim o problema e olvidando o doloroso.

A posição pública de muitos especialistas, climatólogos e activistas seniores segue um padrão reivindicativo que coloca totalmente a responsabilidade e a acção nos governos e, por vezes, nos países. Sim, os governos são, de modo formal, responsáveis pelo que ocorre em cada território e pela respectiva população e ainda não existe um governo planetário. Mas, na realidade e neste caso, a situação é mais complexa e ultrapassa fronteiras e as ideias feitas. Os acordos entre os governos dos países serão muito positivos para a causa ambiental, mas o cerne do problema ambiental é um dilema de difícil solução. Numa época de construção de muros, tem havido um muro virtual entre o presente e o passado, entre o que se deseja agora e a natureza humana do processo que se tem vindo a desenvolver há muito tempo ultrapassando os governos.

Na minha opinião, a crise ambiental é um espelho no qual aparecem os responsáveis: “Nós Todos”. Disse António Guterres que “estamos a cavar a nossa sepultura”. Uma metáfora forte, mas incompleta: uns têm uma escavadora potente, mas a maioria tem uma pequena pá de praia. O “Nós” é muito desigual: 1% da população (com mais rendimentos) produz 16% da poluição mundial de acordo com o The Guardian (5/11/21). Algo semelhante ocorre entre países ricos e pobres. Os especialistas afirmam que este processo teve início na Revolução Industrial, mas é raro a análise histórica prosseguir até à época presente, como se o Tempo fosse só Presente e Futuro. Com a Revolução Industrial veio a aplicação intensiva dos conhecimentos científicos e das técnicas na produção para comercialização. Exceptuando alguns períodos de crises severas, a vontade predominante foi a de uma produção sempre crescente e um consumo sempre crescente de recursos naturais e energia. Economistas, engenheiros, empresários e políticos associaram-se cada vez mais numa ideia: crescimento na produção equivale a desenvolvimento, mais valor acrescentado e progresso social (o PIB e outros indicadores têm que aumentar sempre). O muito bom que foi acontecendo na saúde e na qualidade de vida é louvável e não está em causa, mas este processo foi escavando o planeta e o seu clima.

Ao longo de gerações, muitos de “Nós” estiveram directamente envolvidos na formação, concepção, produção, gestão e comercialização de poluentes, nomeadamente na extracção, preparação e transporte de combustíveis. E a maioria na compra e uso de produtos que se apresentaram como os mais convenientes ou necessários e com chancela de qualidade técnica. Serão os governos os mais responsáveis por este processo? Os países mais poluidores são só o resultado da acção dos seus governos ou serão condicionados por outros poderes? Os governos são cada vez mais sensíveis a indicadores da situação económica atendendo ao reflexo desta na vida e desejos das populações ou, então, a uma competição estratégica. Ao mantra “são as empresas que criam a riqueza” deveria juntar-se “e são as empresas a origem da maioria da poluição”. Na verdade, atribuem-se aos governos a posse das alavancas para a transição, mas há milhões de outras alavancas, algumas mais poderosas do que as dos governos democráticos.

Há a conhecida vontade de poder que caracteriza a natureza humana: ambição e desejo de atingir o sucesso por meio da actividade produtiva e comercial, de alguns. A exigência da carreira profissional, de muitos, que pode afastar a reflexão sobre possíveis efeitos ambientais do que se executa. Mas a realidade roda: a experiência pessoal recorda-me a resistência contra as energias renováveis que agora são queridas, a oposição à internalização dos custos ambientais e a defesa por académicos da deslocalização, agora substituída por economia circular, sustentabilidade, autonomia e reindustrialização.

O dilema atrás referido é este: nas democracias os políticos estão entre a vontade de defesa do ambiente, o poder de grupos económicos e a vontade dos eleitores. Eles sabem que a transição em causa pode vir a ser muito dolorosa para as pessoas e suscitar desejos contraditórios insanáveis. A crise da covid-19 foi uma amostra deste comportamento social. Mas em democracia a mudança virtuosa e solidária poderá também vir das pessoas, de “Nós”. Que não seja a destempo.

A COP26 terminou. Assim como os rochedos desviam o curso de água de um rio, as COP poderão ir mudando o sentido das vontades humanas.

Mas não há só uma transição em curso. Para além da transição ambiental e da energia, há também uma transição digital com muito poderosos actores e impulsionada pelos governos europeus e por novas vontades. Se no caso da primeira transição há algumas metas bem definidas, no caso do digital não se vislumbra um horizonte bem definido de objectivos a atingir ou a evitar. Ouve-se uma justificação: a competitividade. Voltamos à natureza humana e ao risco de os vindouros terem de afirmar que não há uma Humanidade B. Ou haverá? Esse é um processo para outra reflexão.

A frase condenatória que escolhi do editor de Júlio Verne é relativa ao romance Paris no séc. XX (escrito e guardado em 1863, mas só publicado em 1994). A frase é da carta de P. Hetzel ao escritor recusando a obra, e exemplifica o receio de se aceitar uma reflexão menos radiosa ou distópica sobre o futuro e a técnica. Sugiro a leitura desta obra.

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