As grandes transições, o risco de disrupção

Doravante, crescerá bastante o risco sistémico da economia digital 4G e 5G. Precisaremos de treino específico para entender e prever as interações fortuitas, os incidentes imprevistos e as descobertas acidentais.

O nosso tempo não corre de feição. Desastres ambientais motivados por alterações climáticas, campos de refugiados em número crescente, pandemia da covid-19, elevado número de abalos de terra e erupções vulcânicas, adição digital e ódio nas redes sociais, polarização social e radicalização política, crise da transição energética, precariedade nos mercados de trabalho e baixos salários, dívidas públicas acumuladas gigantescas, crescente tensão geopolítica entre grandes potências. Por que razão se acumulam tantos riscos elevados e com tal perigosidade?

A razão principal, quero crer, reside no afloramento dos impactos das grandes transições - climática, ecológica, energética, demográfica, digital, migratória, laboral, sociocultural e sociopolítica - e numa inusitada convergência de todos os seus efeitos, internos e externos, nas décadas mais próximas e, bem assim, na impotência da política, tal como a conhecemos, para lidar com tantos eventos de tal amplitude. Senão vejamos.

A vertigem digital e as suas inúmeras provações

Eis o vórtice em que estamos metidos: chips e sensores, drones e câmaras de vigilância, interfaces cérebro-computacionais e nano-implantes, máquinas inteligentes e mestres algoritmos, robots e veículos autónomos, torres e antenas. Neste ambiente congestionado e num campo eletromagnético 4G+5G cada vez mais preenchido, seria impossível não acontecerem interações fortuitas, incidentes imprevistos, impactos inusitados, descobertas acidentais. Estamos, assim, obrigados a multiplicar os ângulos de observação e as perspetivas de olhar para os problemas. A surpresa pode ser, deveras, surpreendente. Basta, apenas, que aconteçam alguns acidentes graves cuja responsabilidade seja atribuída, “afinal”, à utilização abusiva de sistemas de inteligência automáticos e veículos autónomos. Estou convencido de que neste novo ambiente de virtualidade real a descontextualização que a inteligência artificial e automática carrega consigo nos fará passar inúmeras provações.

Velocidade e colisão

Com a chegada das redes 4G e 5G chegam as tecnologias mais disruptivas, mas chega, também, o risco de mais imersão, invasão e intrusão, ou seja, o risco iminente de uma grande colisão. Dito de outro modo, com a chegada das redes distribuídas as tecnologias imersivas, intrusivas e invasivas irão colidir, tarde ou cedo, com os seus destinatários potenciais. O que importa sublinhar nesta altura, no preciso momento em que a alta velocidade da rede 5G está para chegar, é o risco muito elevado de uma “grande colisão por excesso de velocidade”. De facto, a pandemia da covid-19 mostra-nos que está iminente uma grande colisão entre o infinitamente grande dos macro-organismos, os seres humanos que nós somos, e o infinitamente pequeno dos microorganismos, como é o caso da covid-19.

Efeitos assimétricos

Os efeitos assimétricos destas grandes transições vão deixar muitos territórios para trás. Cada transição tem o seu ciclo de vida específico, com uma duração variável, e é completamente impossível abordar todas as suas consequências no âmbito limitado de uma escala de tempo ou geografia em concreto. Ou seja, cada território nacional ou regional acabará por sofrer, tarde ou cedo, os danos colaterais de medidas erradas tomadas pelos territórios seus vizinhos. É nesta altura, justamente, que organizações supranacionais como a União Europeia ou subnacionais como as comunidades intermunicipais poderão e deverão mostrar toda a sua relevância geoeconómica e geopolítica.

As interações fortuitas e os imponderáveis do acaso

As características principais da rede 5G são a hipervelocidade, baixa latência, alta conectividade, elevada densidade e intensidade, curto alcance. Se pensarmos, agora, no polígono digital que esta rede nos oferece – Big data e computação na nuvem, (BDCC), Internet dos objetos (IOT), Inteligência artificial (IA), Realidade aumentada e virtual (RAV), Computação periférica (EC) – e na interação intensa entre estes e outros dispositivos tecnológicos e digitais, estamos cada vez mais próximos das chamadas “propriedades emergentes” do “serendipismo” (do inglês serenpidity), a saber, interações fortuitas, incidentes imprevistos, impactos inusitados, descobertas acidentais. Ou seja, perante a interdependência máxima crescem extraordinariamente os imponderáveis do acaso.

Dispositivos tecnológicos e assistentes inteligentes

Na sociedade da informação e da comunicação a inteligência deixou de estar contida nos limites humanos originais. Com efeito, nos dias que correm, a inteligência está dispersa e difusa, manifesta-se sob múltiplas formas e interage com praticamente tudo o que nos envolve. Deste ponto de vista, a realidade não para de aumentar todos os dias à medida que a inteligência se transfere para ambientes inteligentes que são extensões da nossa própria inteligência. Hoje tudo é smart, desde a realidade virtual e aumentada aos interfaces cérebro-computacionais, desde a inteligência dos objetos até à inteligência das máquinas. De facto, a nossa inteligência e as faculdades humanas estão a transitar para fora do seu habitat biológico e o corpo humano instala-se em dispositivos tecnológicos transumanos e pós-humanos cuja configuração futura nem sequer imaginamos.

Entre a distração e a alucinação

Somos screeners muitas horas por dia, é impossível manter a atenção num ambiente completamente saturado de notificações e avisos. A multiplicação dos dispositivos tecnológicos e digitais – uma espécie de sexto continente - exige de nós uma atualização constante. Todos os dias mergulhamos num imenso oceano de informação, experimentamos uma vertigem permanente para separar o essencial do acessório e lutamos com imensas dificuldades para administrar a nossa economia da atenção. No final do dia estamos exaustos e no dia seguinte, ainda debilitados, tudo recomeça. Na vertigem o foco da atenção converte-se num turbilhão, talvez, mesmo, em delírio e alucinação.

As mudanças paradigmáticas

Entre tantas transições previsíveis e excecionais haverá, também, mudanças paradigmáticas, cujos sinais de longo alcance só alguns vislumbrarão. O drama das mudanças paradigmáticas é que elas não se compadecem com a duração dos ciclos políticos curtos e muito menos com programas de governo reativos. A redução dos passivos climáticos, tais como o sequestro e armazenamento de carbono, ou a mudança de alguns aspetos nucleares do modelo de desenvolvimento dominante, por exemplo, a revisão de algumas cadeias de valor no sentido da sua reterritorialização, ou, ainda, a mudança de aspetos fundamentais do nosso comportamento quotidiano, por exemplo, no que diz respeito ao cumprimento de regras base de economia circular. Quer dizer, temos de estar avisados, não podemos permitir que os efeitos contraproducentes ou paradoxais das várias transições acabem por absorver os pequenos/grandes sinais das mudanças paradigmáticas.

Notas Finais

Como se observa, o risco de disrupção está sempre presente, seja o carácter invasivo e intrusivo das tecnologias 5G, a histeria coletiva de informação e comunicação num ambiente totalmente saturado, a crença nos mestres-algoritmos e na metalinguagem normalizadora das plataformas digitais. Digamos que, doravante, crescerá bastante o risco sistémico da economia digital 4G e 5G e, nesse sentido, estamos obrigados a desenvolver treino específico e capacidades especiais para entender e antecipar como se forjam e desenvolvem as interações fortuitas, os incidentes imprevistos e, por via deles, também, as descobertas acidentais. 

Este é o grande paradoxo do nosso tempo. Mais liberdade, mais incerteza, mais episódios acidentais. Por outro lado, os sinais dessas interações acidentais podem ser de tal modo fortuitos e furtivos que dificilmente caberão no interior das nossas métricas conceptuais e instrumentais habituais. O nosso arsenal teórico e, muito em especial, o campo das ciências sociais e humanas, com origem no iluminismo moderno e na cultura analógica, estão definitivamente postos em causa e a academia deve preparar-se para rever o seu estatuto científico eminente se não quiser ser um ator secundário que corre pelo lado de fora da realidade da cultura tecnológica e digital.

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