Ainda bem que já esqueci o Cláudio

Encontrei a Irene na farmácia, perguntou-me pelo Cláudio e eu: “Qual Cláudio?” E ela: “O Cláudio teu marido, qual Cláudio é que havia de ser?”; e eu: “Ah, esse Cláudio! Separámo-nos, ele saiu de casa, mas eu estou óptima!”.

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"Segui caminho, passou por mim o 713, que era o autocarro que o Cláudio apanhava para ir para o trabalho" Diego Nery

Ainda bem que já esqueci o Cláudio. Hoje estava a fazer a sopa de espinafres, a preferida do Cláudio, e a pensar: Graças a Deus que estou sozinha, estou muito melhor assim! Não sujei louça quase nenhuma, com o Cláudio a cada refeição enchia logo metade da máquina. Depois fui dar comida ao Lulu, dizem que os cães são parecidos com os donos e este é a carinha do Cláudio, que Deus me perdoe. A maneira como olha para mim, com aqueles olhos de pecador e aquela barbicha branca, mesmo a fazer lembrar a do Cláudio. Saio para a rua e reparo que alguém estacionou no lugar do Cláudio. Na banca de jornal vejo que o Benfica ganhou qualquer coisa, estão todos abraçados, o Cláudio há-de estar satisfeito. Fui ao supermercado e escolhi um melão da maneira que o Cláudio me ensinou: “É pelo toutiço que se escolhe o melão”, dizia sempre. Na fila ainda se pôs um grandalhão à minha frente, fez que não me viu, eu não disse nada. Havia de ser com o Cláudio! O Cláudio nunca foi de se ficar.

Encontrei a Irene na farmácia, perguntou-me pelo Cláudio e eu: “Qual Cláudio?” E ela: “O Cláudio teu marido, qual Cláudio é que havia de ser?”; e eu: “Ah, esse Cláudio! Separámo-nos, ele saiu de casa, mas eu estou óptima!”.

Segui caminho, passou por mim o 713, que era o autocarro que o Cláudio apanhava para ir para o trabalho, fui pela calçada a carregar os sacos, passei pelo vizinho, o Cláudio não gostava nada dele e não era para menos, o homem está sempre de trombas. Entrei no prédio, abri o correio, não havia cartas para o Cláudio. À porta de casa descalcei as botas, finalmente ia deixar de ter o chão com restos de terra porque o Cláudio se recusava a tirar os sapatos para entrar em casa. Ofereci-lhe umas pantufas da Serra da Estrela e nem assim. Sentei-me no sofá e devolvi a chamada à Manuela: “Não sei se te devia contar isto…”, “Então?”; “Vi o Cláudio”; “Conta à vontade, eu estou-me nas tintas para o Cláudio!”. “Ah, pronto, é que ele estava acompanhado. Estava bem-disposto.” “Então, quem era?”; “Uma perua qualquer… Mas não tem a tua classe!”.

Desliguei o telefone e fui até à cozinha ao armário das bebidas do Cláudio. Decidi beber um uísque daquele que o irmão do Cláudio lhe deu quando ele fez 50 anos. Depois fui ao álbum do nosso casamento, peguei numa faca e comecei a esfaquear as fotografias do Cláudio. Bebi metade da garrafa, peguei no telemóvel e procurei o nome do Cláudio. Decidi ligar-lhe. Não atendeu. Escrevi-lhe uma mensagem: “Vai-te lixar, Cláudio!” Liguei-lhe mais nove vezes. Depois escrevi outra mensagem: “Foi engano.” Liguei a aparelhagem e pus a tocar o Stevie Wonder, que era o cantor preferido do Cláudio. Não me recordo bem, mas acho que lhe liguei mais uma vez e deixei mensagem na caixa postal a cantar o “I just called to say I love you”.

Adormeci no sofá e acordei sobressaltada de um sonho com o Cláudio. Fui até ao quarto e vesti um dos pijamas do Cláudio. Lembrei-me que no dia seguinte fazia anos a mãe do Cláudio, tinha de lhe telefonar. Deitei-me na cama e dormi do lado do Cláudio, por que não? Sou uma mulher livre, faço o que quiser. Na almofada ainda conseguia inalar o cheiro do after shave do Cláudio. Tomei um calmante e adormeci. Ainda bem que já esqueci o Cláudio.

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