Aluna garante que professora lhe pediu para se focar em poema que saiu no exame de Português

Novo julgamento da docente suspeita de revelar a estudante conteúdo de prova começou esta terça-feira e ficou marcado por contradições quer da arguida, quer da estudante.

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Julgamento começou hoje Diego Nery

Começou esta terça-feira no Campus da Justiça, em Lisboa, o segundo julgamento da ex-professora de Português Edviges Ferreira, suspeita de ter revelado com antecedência a uma aluna a quem dava explicações o conteúdo do exame de Português do 12.º ano.

O caso remonta a 2017, altura em que a docente teve acesso antecipado às provas da disciplina, para as poder auditar com vista a emitir um parecer prévio sobre a sua validade científica, por presidir à Associação de Professores de Português. Num primeiro julgamento, Edviges Ferreira foi ilibada dos crimes de abuso de poder e violação do segredo por funcionário, mas depois de um recurso do Ministério Público o Tribunal da Relação de Lisboa detectou contradições insanáveis na sentença de primeira instância, razão pela qual a ex-professora, agora aposentada, está novamente sentada no banco dos réus.

E, apesar de continuar a garantir que nunca passou à explicanda a informação confidencial de que dispunha sobre o teor do exame, admitiu, ainda assim, ter-lhe de facto dado instruções para estudar determinados temas e não outros. Como nas provas de Português do ano anterior tinham saído a peça de teatro de Sttau Monteiro Felizmente Há Luar e a lírica de Camões, disse-lhe para descartar estes assuntos. E aconselhou-a a que trabalhasse com mais afinco noutros temas.

As suspeitas recaíram sobre a então docente da Escola Secundária Rainha Dona Leonor, em Lisboa, depois de outra estudante da rede de relacionamentos da primeira ter partilhado uma gravação áudio pelo WhatsApp: “Ó malta, falei com uma amiga minha cuja explicadora é presidente do sindicato de professores, uma comuna, e diz que ela precisa mesmo, mesmo, mesmo e só de estudar Alberto Caeiro e contos e poesia do século XX. Ela sabe todos os anos o que sai e este ano inclusive. E pediu para ela treinar também uma composição sobre a importância da memória...”

O palpite viria a revelar-se certeiro: a prova incluía um poema daquele heterónimo de Pessoa, intitulado E há Poetas que são Artistas, tendo ainda sido pedido aos alunos que dissertassem sobre os temas da memória e da importância dos vizinhos no combate à solidão.

Edviges Ferreira alega que apontou à explicanda estes entre muitos outros temas. Interrogada pela juíza se os teria indicado caso não conhecesse antecipadamente o exame, a arguida não foi taxativa: “Possivelmente sim.” Quando aceitou auditar a prova, a professora teve de assinar um termo de responsabilidade em que se comprometia a não dar explicações que versassem sobre a matéria curricular em causa. Que violou deliberadamente, acabou por admitir, mas não sem antes se contradizer, ao afirmar que ignorava esta proibição.

Nunca se conseguiu apurar a verdadeira origem da informação da mensagem de áudio, que ainda por cima incluía alguns detalhes errados. Edviges Ferreira não milita no PCP. Ouvida em tribunal na qualidade de testemunha, a sua autora voltou a afirmar que tinha ouvido aquilo da boca de colegas que estavam a conversar à porta de uma tabacaria nas imediações do Liceu Maria Amália, e que foram eles a mencionar a explicadora. Negou ter sabido de tudo directamente da boca da colega que andava nas explicações, apesar de a conhecer: “Não me dava com ela nessa altura.”

Testemunhos revelam contradições

O relato bate certo com o da explicanda, cujos depoimentos que foi prestando sobre o caso nas várias vezes que foi ouvida revelam, porém, contradições. Num desses depoimentos, afirmou que soube previamente o que ia constar do enunciado, tendo passado a informação a uma terceira colega. Porém, agora em tribunal garantiu não ter percebido que Edviges Ferreira sabia efectivamente o que ia sair. Mas admitiu que a docente lhe indicou, entre muitas outras coisas, o poema de Alberto Caeiro, tendo-o o estudado consigo “duas ou três vezes”, tendo-lhe dito para se focar nele. E o combate à solidão também foi “dos sete ou oito temas” que lhe pediu para preparar, já numa altura “próxima do exame”.

Já a arguida afirma que foram mais os temas em que a mandou trabalhar, talvez uma vintena. E esgrime em sua defesa dois pontos importantes: a nota negativa que a rapariga acabou por ter no exame, por um lado, supostamente incompatível com a informação privilegiada que é acusada de lhe ter passado e, por outro, as mais de cinco dezenas de pessoas que contabiliza terem tido acesso prévio e autorizado ao enunciado, além dela própria.

“Nunca me passaria pela cabeça revelar enunciado”, assegurou a ex-docente em tribunal. “Nunca, nunca!”

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