No lugar onde dói

Foi tudo isso e mais que perguntei. Onde doía. Se não poderia deixar de doer. Se ficar refém daquilo que pensamos ser o amor e não recebendo nada em troca, não é pior do que estar livre e ter o mundo para descobrir.

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"Claro que o amor é a linguagem mais universal e complexa que praticamos"

Foi num almoço de domingo.

Algo prévio já me fizera não ter medo de juntar as palavras para dizer a verdade. De repente estava à mesa com duas adolescentes e tomo o balanço que vem bem cá de trás, como num baloiço e ganha fôlego suficiente para avançar: “achas que recebes o suficiente para estar nesta relação?”.

Agora que vejo as palavras escritas e elas ganham voz, penso como gostava de ter ouvido um adulto (no meu tempo) dizer-me isto. Num almoço tardio de domingo.

O domingo é o dia mais triste dos dias. Aquele que nunca foi suficiente para deixar de sentir o avesso da vida. O domingo, um dia desconfortável até quando a família o tenta camuflar. Nunca me chegou. Agora, muito mais apaziguada, dito as regras do dia que quero viver. Há sempre muito amor à mistura. Vivemos o dia escolhendo-o: no despertar, nas horas que não soam a alertas, na forma como podemos fazer refeições sem restrições. Há amor em tudo isto. E depois no filme que vamos ver ou na roupa que vamos juntar de uma semana cheia, mas, sim, há amor em tudo isto. Tornei o domingo num dia bom. Conquista dos dias tristes somados.

Estamos no almoço as três e o amor, puxo-o eu para a conversa, quando o amor ainda é tema que as perturba e ruboriza, e, sobretudo, lhes traz dores com as quais não sabem lidar.

Eu não sou a raposa matreira que sabe tudo e sorri a olhar o horizonte sem surpresas: não, eu sou a miúda que como elas já teve dores que não tinham onde se acomodar e nunca, na altura, alguém foi capaz de perguntar: e de que lado te dói? E por que ficas?

Foi tudo isso e mais que perguntei. Onde doía. Se não poderia deixar de doer. Se ficar refém daquilo que pensamos ser o amor e não recebendo nada em troca, não é pior do que estar livre e ter o mundo para descobrir.

Elas sorriram, engoliram ali pequenas dores e falaram.

Já falam aos 13 anos de relações tóxicas. Já sabem nesta idade que há pessoas que inevitavelmente nos vão fazer sofrer e ainda assim ficamos. Nunca lhes diria que isso nos pode acontecer muito mais tarde. Pode. O que lhes queria dizer, neste domingo de almoço sem regras, era que podiam escolher e que o medo de não ter nada era melhor do que o medo de estar à míngua. Da cara desolada que fica em suspenso. Dos olhos em sobressalto que aguardam uma mensagem que nunca chega.

Precisava de dizer a estas miúdas (uma delas do meu sangue) que nem sempre temos de escolher aquilo que quase nos parece caber, mas não serve de maneira nenhuma. Que são novas e têm forças para abraçar o mundo e que eu, sabendo de cor as dores delas, posso dizer que há outras opções no menu: sofrer menos. O horizonte ora se comprime, ora se expande consoante o medo. O medo, como muitos de nós vão lembrando tantas vezes, é de todas a pior linguagem. A que tolhe, a que nos faz sumidos de identidade e força, a que não nos deixa ver o mundo com as cores todas.

Eu sei que todos vamos passar por estas dores, mas neste almoço de domingo foi bom lembrar que às vezes podemos ser um bocadinho mais destemidos e escolher: escolher o zero em vez da escala negativa é o princípio de uma aventura mais feliz.

Os olhinhos delas desciam muitas vezes até à toalha como se procurassem refúgio para a timidez ou para aquilo que ainda não sabiam responder. E, quantos de nós, mais velhos, não têm ainda resposta para estas questões?

Claro que o amor é a linguagem mais universal e complexa que praticamos.

Às vezes é mais fácil ficar com menos.

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