Tradutor: traidor ou traído?

O tradutor está sujeito a um grau extremo de volatilidade laboral e financeira. Traduzir implica, frequentemente, obedecer aos caprichos do mercado, sob consequência de perder uma tarefa para quem a aceitar pelo valor mais rasteiro. A esta desmedida e perene incerteza laboral junta-se-lhe um crime mais discreto: a invisibilização.

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O aforismo italiano traduttore, traditore é talvez das expressões mais conhecidas sobre tradutores. Embora as limitações práticas da tradução mereçam ampla investigação e debate, enquanto tradutor freelance, creio ter razões válidas para denunciar uma traição bem maior e mais corriqueira do que a impossibilidade de fazer justiça a um determinado texto. Por traição, refiro-me à desvalorização e invisibilização sistemáticas do trabalho do tradutor.

Amarrado, quiçá por ingénua paixão, a um ofício ingrato e mal pago, em Portugal, o tradutor está sujeito a um grau extremo de volatilidade laboral e financeira. Traduzir implica, frequentemente, obedecer aos caprichos do mercado, sob consequência de perder uma tarefa para quem a aceitar pelo valor mais rasteiro. Esta constante depreciação dos níveis de exigência e dos honorários tem como consequência não só a perda de qualidade dos serviços prestados, como, de igual modo, uma inevitável insustentabilidade da tradução enquanto emprego.

A esta desmedida e perene incerteza laboral junta-se-lhe um crime mais discreto: a invisibilização. Existindo variados ramos de tradução, cada um com seus trâmites e práticas, cinjo-me, aqui, ao tradutor literário. O nome do tradutor é raramente mencionado na capa dos livros, à excepção de figuras mais sonantes, como Frederico Lourenço, sendo mais comummente engavetado na ficha técnica do esquecimento. Por vezes, o nome do tradutor é, inclusive, deixado de fora dos sites das editoras ou das suas páginas nas redes sociais. No caso da tradução a partir de línguas menos traduzidas, nem sempre é claro se a obra foi adaptada a partir do original ou de uma outra versão.

A supressão do nome do tradutor esconde uma outra realidade incómoda: que a maioria dos tradutores não goza de direitos de autor. Tendo em conta o seu papel efectivo de co-autor, é lógico e devido que o tradutor receba honorários resultantes de copyright. Não se trata de uma proposta revolucionária. Na verdade, em 1976, já a UNESCO apresentava uma carta de direitos do tradutor que garantia, entre outros, o direito a auferir direitos de autor, condições de trabalho dignas e reconhecimento explícito (entenda-se: nome na capa). A própria ideia de concessão de co-autoria ao tradutor não é inédita, conquanto rara. Em 2016, o Man Booker International Prize foi atribuído simultaneamente à autora sul-coreana Han Kang, pela obra A Vegetariana, e à sua tradutora em língua inglesa, Deborah Smith. Sejamos claros: sem tradutores, o mundo fecha-se sobre si próprio, fragmenta-se em ilhéus linguísticos sem pontes que os conectem. Já dizia Saramago, também ele tradutor em determinado momento da sua vida, que “os autores fazem as literaturas nacionais, mas são os tradutores que fazem a literatura universal”.

O cerne das questões do copyright e do reconhecimento é simples: independentemente de haver ou não uma relação comercial entre a entidade contratante e o tradutor (frequentemente a recibos verdes), este deve ter o direito a ser devidamente compensado e creditado pelo seu trabalho, de modo a poder seguir os seus projectos de vida. Ademais, uma maior visibilidade da figura do tradutor trará benefícios não só para os profissionais da área como para os próprios consumidores da cultura, possibilitando um maior grau de escrutínio das obras traduzidas. Reunidas as mínimas condições, aí, sim, poderemos saber quem são os verdadeiros traidores da palavra.

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