Maldito bloco central
Graças ao bloco central de 83-85, Portugal encontrou forma de recomeçar a funcionar após a bancarrota e logrou lançar-se no caminho da Europa.
Quando Jerónimo de Sousa aparece na televisão a chamar a atenção para os riscos do malfadado bloco central está a cumprir um ritual velho de décadas na vida política portuguesa. Um ritual que alimenta os fantasmas partilhados tanto pela esquerda como pela direita. Realmente, as ideologias funcionam como uma espécie de óculos que distorcem a realidade, moldando os factos para um quadro conceptual que espelha a fé que o seu seguidor/defensor pratica. Neste quadro, a visão aberta e que nos permite olhar para a realidade torna-se num perigo mortal para os que vivem da propagação de certa ideologia. E é então que diabolizar o bloco central passa a fazer parte dos objectivos primeiros para certas forças políticas.
Vale a pena lembrar Mário Soares e Carlos Mota Pinto que, em 1983, não tendo dúvidas quanto à situação desesperada de Portugal, decidiram unir esforços para resolver os problemas, esquecendo, ainda que momentaneamente, as suas próprias ideologias. Estávamos em bancarrota efectiva, fruto das convulsões políticas que começaram no PREC e que desaguaram na resposta da direita.
Graças ao bloco central de 83-85, Portugal encontrou forma de recomeçar a funcionar e logrou lançar-se no caminho da Europa. Não fora esse esforço conjunto e poder-se-ia imaginar o que teria acontecido ao nosso país no momento em que a Europa abria as portas à Espanha e nós não tínhamos sequer dinheiro para comprar combustível. Lembro-me, como se fosse hoje, de ter assistido na altura, em Paris, a uma conferência dos negociadores europeus para o alargamento da então CEE, que tranquilamente afirmavam não compreender como Portugal poderia ser aceite. Demasiado pobres, afirmavam. Demasiado desorganizados também. A Portugal deveria ser proposto a adesão aos acordos de Lomé, mas nunca a adesão à CEE. Ora o que o Ministro das Finanças do Bloco Central Ernâni Lopes conseguiu, com o apoio internacional de que Mário Soares gozava e com o suporte do país que Mota Pinto protagonizava, foi, à época, nada menos do que um verdadeiro milagre. Portugal sobreviveu, Cavaco Silva fez a sua rodagem para a Figueira, entrámos na Europa e o processo político retomou o seu curso com as hostes humanas a reentrar nas respectivas trincheiras ideológicas.
Passado o susto, voltámos à festa. Mas a salvação do país de nada valeu aos seus promotores. Carlos Mota Pinto pagou pelo seu esforço com a própria vida e Mário Soares teve de fazer uso das suas capacidades inatas de sobrevivência para conseguir vir a reaparecer mais tarde. O génio de Ernâni Lopes continuou, sim, a contar com a devoção de um pequeno círculo de amigos, mas o país esqueceu. Ou melhor, reteve como uma maldição aquele período em que os inimigos irreconciliáveis tiveram de se suportar num supostamente nefasto bloco central.
Esta ideia de traição à pureza dos princípios ideológicos vai perdurar e ficará gravada no léxico nacional. O termo bloco central cristalizou-se como sinónimo de pecado a evitar, impossibilitando as direcções do PS e do PSD de em tal pensar. Ainda hoje o feitiço se mantém em todo o seu esplendor, bem protegido pelas imprecações à esquerda e à direita, como se vê nas preocupações de Jerónimo de Sousa e de André Ventura, apesar de, nessa Europa fora, o entendimento de partidos ao serviço do bem comum ser uma regra banal. A dificuldade de dispensar as muletas ideológicas continua a ser uma muito nossa característica nacional. Não somos os únicos, mas a verdade é que, neste aspecto, não estamos em boa companhia.
A estratégia do PCP ou do BE quando se indignam contra o bloco central é realmente uma espécie de maldição e tem um propósito muito simples: reprimir as iniciativas do PS, impedindo-o de trabalhar com a direita que, por seu lado, ao manter o muro que a separa da esquerda, se quer proteger da contaminação das ideias perigosas. O resultado, todos o conhecemos bem: a impossibilidade de resolver os estrangulamentos que barram o bom funcionamento da sociedade e da economia, já que, de acordo com as regras constitucionais democráticas que aprovámos, só uma maioria qualificada pode fazer reformas e essa maioria é impossível apenas com a esquerda ou só com a direita. Quando nos queixamos do desempenho da Justiça ou da economia anémica que nos envergonha - qualquer dia somos ultrapassados pelo Bangladesh -, fazemos por esquecer que somos nós que travamos a possibilidade de resolver os problemas reais e que nos contentamos com a prática de lançar as culpas para o outro lado da barreira ideológica.
Afinal, de que nos queixamos?