A violência obstétrica: eu vi

Está na hora de a Ordem dos Médicos e de o Governo falarem deste tema abertamente. É emergente escutar as centenas, os milhares de relatos de mulheres vítimas, corroborados por profissionais que se demarcam deste tipo de práticas e que não se revêem nesta violência institucionalizada.

A violência obstétrica (VO) é um tipo de violência de género, em que existe a apropriação do corpo da mulher grávida por profissionais de saúde durante a gravidez e parto. Não diz respeito apenas aos médicos obstetras, mas a todos os profissionais que interagem com a grávida, sendo, na verdade, um tipo de violência institucional de género.

Importa notar que não há necessariamente dolo. A violência não é apenas o abuso físico com uso de força ou restrição, mas também o abuso psicológico, como o uso de linguagem rude, ameaças, coerção, omissão de informação, ausência de consentimento informado, realização de práticas não baseadas em evidência, entre vários outros.

Em 2014 a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu que os maus tratos durante a gravidez e parto constituem uma violação dos direitos humanos fundamentais e salientou a necessidade de criar medidas que garantam cuidados seguros e respeitosos às grávidas. O Parlamento Europeu (PE), em 2019, reiterou as suas resoluções sobre direitos reprodutivos e violência de género, incluindo durante a gravidez. Em Portugal não sabemos, oficialmente, como, quando e onde acontece a VO. Porém, a nível profissional e pessoal, já a experienciámos, assistimos, impedimos e cruzámos caminho com alguém que a viveu.

Muitas são as famílias que, infelizmente, recordando os seus partos, reconhecem alguma das práticas referidas e o sofrimento que estas lhes causaram. Não existem condenações em Portugal por VO porque, em termos de jurisprudência, o conceito não é reconhecido nem utilizado. Neste sentido, surge a proposta de projeto de lei para criminalização desta prática.

A Ordem dos Médicos pronunciou-se, negando a existência desta situação no nosso país, e apoiando-se essencialmente no facto de termos mortalidades materno-infantis reduzidas. Baixas taxas de mortalidade não invalidam a existência de violência, embora seja urgente esclarecer porque é que a taxa de mortalidade materna em Portugal está em ascensão crítica e atingiu valores que não se viam há 30 anos!

É imperativo auditar esta situação. Na verdade, sabemos muito pouco sobre como se nasce no nosso país, à excepção da mortalidade e da percentagem de partos por cesariana, taxa esta duas vezes superior ao recomendado pela OMS. Apesar da regulamentação existente, que prevê a notificação obrigatória dos indicadores de saúde relativos ao parto, desde 2016 que os hospitais transgridem a lei, não cumprindo com esta notificação.

Desta forma, não existem indicadores de saúde maternos de conhecimento público nem qualquer indicador de satisfação com os cuidados recebidos. A Assembleia da República recomendou recentemente o estudo sobre a existência de práticas de VO e a eliminação das mesmas, mas, na realidade, o que é que está a ser feito? Que medidas estão a ser tomadas nos hospitais? O que se está a averiguar? A VO existe e é fundamental que se assuma, para conhecermos a sua dimensão.

A promoção de literacia em saúde, a normalização dos planos de parto, a auditoria pública de indicadores de saúde, a disseminação de boas práticas promovidas pela OMS, a promoção de campanhas de sensibilização sobre direitos dos utentes, assim como sobre VO junto dos profissionais, e a criação de um método de reporte simples, acessível às vítimas, e uma forma organizada de posterior análise das queixas são algumas medidas sugeridas pelo PE. Estas medidas, por um lado, permitiriam quebrar este ciclo de violência institucional enraizada e, por outro, encetar uma verdadeira partilha de responsabilidade entre mulheres e profissionais, na tomada de decisões sobre a sua saúde.

Está na hora de a Ordem dos Médicos e de o Governo falarem deste tema abertamente. É emergente escutar as centenas, os milhares de relatos de mulheres vítimas, corroborados por profissionais que se demarcam deste tipo de práticas e que não se revêem nesta violência institucionalizada. A discussão da VO não deve opor profissionais de saúde e mulheres, deve, sim, pôr o foco na certeza de que há muito mais para além da taxa de mortalidade materno-infantil. Está na hora de quebrar com os “achismos” e com o paternalismo clínico e assegurar cuidados de saúde baseados em evidência, mantendo a autodeterminação das mulheres.

Texto escrito pelos seguintes médicos:
Alexandrina Mendes
Carlota Veiga de Macedo
Inês Furtado
Joana Relva
Nuno H. Santos
Rita Matos Parreira
Sofia Sousa e Silva
Sofia T. Cunha

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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