O despertador
Às vezes estamos sozinhos na caminhada e ainda assim seguimos em frente.
Nunca mais perguntei por ela. Apetece-me mantê-la no meu imaginário tão certa como as casas desta rua.
Foram outros os anos, outro o mundo, antes do que ainda estamos a viver.
Íamos de manhã cedo estremunhadas inventando conversas para combater o que nos faria continuar a estar deitadas e a sonhar. Eu e a minha filha cheias de perguntas rindo no lugar certo do caminho. Acontecia sempre rirmo-nos ali a meio do percurso. Como se no riso encontrássemos a força para dar razão ao nosso acordar. Perturba-me muito as pessoas que se riem no momento errado. Uma pessoa que gargalha ao meu lado num momento sério tira sentido à inteligência. Se calhar o problema é meu.
Voltemos ao caminho daquelas manhãs.
A alvorada tímida e a vida já agitada naquele compasso rápido que come o dia e que só acontece de manhã: olhamos para o relógio e metade do dia já passou. Ainda estamos ali a tropeçar no riso e nas perguntas que nos fazem ficar acordadas. Talvez a minha filha nunca tenha reparado nela. O meu olhar cansado vai buscar outros detalhes que se somam agora à inquietação de outros tempos. Eu vi-a sempre.
A mulher iniciava a caminhada cedo como quem se propusera a cumprir uma promessa de fé, mas todos os dias. Todos.
Quando passávamos por ela eram 8h10 talvez. Ela estava do outro lado da rua. Seguíamos em passada rápida, perguntávamos a razão de ser dos anúncios que mostravam homens encorpados ou mulheres pouco vestidas e eu fazia as vozes imaginárias deles. Fazia isso só para a minha filha se rir, mas já avistara do outro lado da rua a mulher.
Dois semáforos depois a minha filha estava entregue na escola. Um abraço arredado dos olhares dos mais novos e eu de volta ao meu caminho sabendo que me haveria de cruzar de novo com a mulher.
Quando o meu passo a alcançava outra vez, ela tinha andado dez metros se tanto. Um rudimentar andarilho fazia-a mover-se a pouco e muito pouco. Uma coisa de nada mas cada passo era uma vitória. Ela madrugava para fazer o seu passeio que podia demorar meio-dia ou dia e meio. Uma caminhada interminável para nos mostrar que estava viva. Que ali continuava. Que os nossos passos rápidos não a atrapalhavam.
Muitas vezes vi-a descer as escadas do centro comercial, ajudada pelo segurança. Às vezes tinha o cabelo arranjado e eu punha-me a pensar se alguém poderia ir lá a casa tratar dela ou se ela teimava em chegar ao Centro a tempo de lhe darem esse pequeno prazer: a água quente a chegar quase ao pescoço e as mãos atrás da calha a tocarem-lhe na nuca puxando os cabelos devagar.
Era um rosto que já tinha muitos caminhos sulcados. Áspera a pele que não encontra motivos para rir logo de manhã.
Lembro-me de perguntar por ela a gente aqui próxima na rua e de me dizerem como se fosse um aviso: “Olhe que ela tem um feitio muito difícil”, e eu encolhia os ombros como se os outros não percebessem que nada nela, nessa caminhada sem fim, poderia trazer motivos para a bonomia ou a complacência. Nada. O caminho vai seguindo cheio de obstáculos. Imaginem o dela.
Nunca percebi o que lhe acontecera para quase a deixar imóvel e persistir na caminhada que a mantinha viva. Sei descrevê-la franzina, de ar severo, apontando ao segurança a sua meta. Cabelo claro, às vezes desgrenhado quando a subida das escadas não chegava a tempo de um momento de vaidade.
Afinal acabo de perguntar à minha filha se alguma vez reparou na existência da mulher da caminhada difícil e ela confirma que sim. Era difícil não a ver. Negociando passo atrás de passo como quem convence os dois pés a serem mais fortes do que o cérebro.
Desde que a pandemia começou que nunca mais a vi. Quero imaginar que está à janela à espera de poder sair de novo sem riscos e que o seu andar não se intimidou com os novos perigos do velho mundo.
Pouco me interessa se o seu feitio era duro, implacável, se destratava por igual os que a ajudavam e os que lhe viravam as costas.
Aquela mulher, a quem um dia aconteceu qualquer coisa de muito grave, era o meu despertador. Era ela que me lembrava que somos nós que ditamos o quanto queremos avançar, quando queremos avançar e por que vale a pena avançar.
Às vezes estamos sozinhos na caminhada e ainda assim seguimos em frente.
A força também se esconde em passos pequeninos.
Havemos de chegar.