Os dois lados de Portugal

Ela seguia as suas críticas, dizia que o problema do Brasil é culpa do Brasil. Que isso nada tem a ver com Portugal e que questionar símbolos coloniais é um acto burro e infantil. Saí da clínica em pranto, andava pela rua em soluços. Via as pessoas, os portugueses, e pareci-me tão errada, tão fora de lugar.

Foto
EPA/Joedson Alves

Era um 7 de Setembro, Dia da Independência do Brasil. Entrei no consultório e disseram-me: “Pode tirar tudo da cintura para baixo”. Logo no início do exame ginecológico, a médica perguntou-me: “De onde a menina é do Brasil?”. “Do Paraná”, respondi. Ela fez uma careta e lamentou a seca do Rio Paraná. Analisando o meu útero na tela, iniciou uma longa lista de tudo o que pensa estar errado no Brasil. Eu ri baixinho e sem graça, tentando abreviar a nossa interacção.

Mas ela não parou. Num tom cada vez mais alto e estridente, a médica tentava convencer-me de quão problemático é o meu país. Eu estava desconfortável, não saía uma palavra da minha boca. Ela seguia as suas críticas, dizia que o problema do Brasil é culpa do Brasil. Que isso nada tem a ver com Portugal e que questionar símbolos coloniais é um acto burro e infantil. Disse que quem o faz é “um monte de bosta” e que isso é manipular as pessoas. “Nem no nazismo foi tão grave”, gritava, ainda com um aparelho dentro do meu corpo. “Quando o filho dá certo é mérito dele, quando não dá, é culpa dos pais.”

A médica encadeava uma crítica noutra, fazendo pausas pontuais para me assegurar de que estava tudo bem com o meu útero. Eu fiquei em choque. Não podia acreditar naquela situação fora de contexto, naquele surrealismo violento. Queria ir embora, queria chorar. O único gatilho foi a minha presença. Bastou encontrar o meu sotaque para dizer tantas crueldades, e no meio de um exame tão delicado. Queria ter falado, queria ter argumentado ou pelo menos pedido que parasse. Mas com os seus olhos tão perto, ouvindo-a gritar ofensas sobre o meu povo, com um aparelho dentro do meu corpo, simplesmente não consegui. Só segurei o choro e esperei que acabasse.

Quando terminou, levantei-me e vesti-me o mais rápido que pude. Ela falava e eu estava desconexa, tentando encontrar sentido para o que tinha acabado de acontecer. Tudo o que a médica dizia vinha de um lugar naturalizado, nem sequer percebia que estava a ser violenta — essa foi a pior parte. Para ela, tudo aquilo era só conversa de passar o tempo.

Eu, já vestida, com a bolsa no ombro, mãos na cintura, pernas tremendo e choro na garganta. Tive coragem para a interromper para saber se podia ir embora. Ela disse, simpática, que sim, desejando-me um óptimo dia. Um óptimo dia.

Assim que virei as costas, comecei a chorar. Saí da clínica em pranto, andava pela rua em soluços. Via as pessoas, os portugueses, e pareci-me tão errada, tão fora de lugar. Sentei-me na ombreira de uma porta e chorei, desesperadamente. Chorei desesperadamente. Durante horas, durante dias. E era 7 de Setembro, o Dia da Independência do Brasil. Sentia-me absurda e longe da realidade, presa numa dor que me havia sido imposta.

Cheguei a casa, sozinha, e pensei que queria um abraço. Longe da minha família, pensei chamar algum amigo brasileiro, mas não quis somar violências. Com um esforço de quem não se quer mostrar frágil, ainda mais num país que me exige ser forte, mandei mensagem para a Marta, minha amiga portuguesa. Perguntava-me se estava a exagerar, cheguei a questionar se era mesmo grave.

Quando a Marta chegou, ela abraçou-me e a primeira coisa que me disse foi: “Estás segura”. Estranhei a princípio, até então não havia pensado que não estava segura. No entanto, o que é estar segura? Segurança é um orgulho português: poder andar nas ruas, tranquilos, sem ter de esconder o telemóvel. Mas e se eu tiver de esconder o meu sotaque?

No dia de se celebrar a independência, caí em questões mal resolvidas entre Portugal e o Brasil. Eu estava cansada, sentia dor ao lembrar os olhos da médica. O que mais dói é saber que ela é apenas uma reprodutora de um discurso. Um discurso pronto, que nos corta, que nos priva e que nos quer o mais longe possível daqui. Um discurso que eu sinto todos os dias, em pequenas entoações e olhares na rua. Um discurso que eu não sei como conter.

Ao entardecer, deitei a cabeça no colo da Marta. Estava anestesiada de tanto choro e irrealidade. Às vezes sentia-me longe e triste, e ela pedia-me desculpas, fazendo festinhas na minha cabeça. Pouco a pouco, a minha amiga portuguesa foi-me dando lugar para estar, lembrando-me do porquê de eu ainda continuar aqui e devolvendo-me o carinho que eu, por um momento, acreditei que não merecia.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários