Salvatore de Bomarzo, sempre a caminhar para algum lado

Querem então ir até à pirâmide etrusca, desenvolve Salvatore, em italiano. “Fui eu que a descobri.” Memórias de viagem pela Itália e pelo Parco dei Mostri, o bosque sagrado dos monstros de Bomarzo, pelo leitor Rafael Vieira.

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Rafael Vieira

Toda a gente se conhece em Bomarzo. A terra é pequena. Todos se cumprimentam quando se encontram na rua, todos sabem tudo de todos. Todos conhecem as histórias de amor e sangue dos lendários senhores da terra, os Orsini. Alguns ainda se recordarão de Pasolini, de quando ia e vinha da sua Torre aqui ao lado, em Chia. E todos conhecem Salvatore, sempre a caminhar para algum lado, de corpo franzino, mãos ossudas e certeiras.

O nariz aquilino aflora-lhe do rosto facetado, testa lustrosa brindada com uns olhos ardentes, azeitonados. Nunca foi além dos montes que abraçam Bomarzo, jamais desceu das montanhas a ver Roma, não poisou a mão nas muralhas de Viterbo. É daqueles que sonham e imaginam a vastidão do mundo sem se darem conta de que ele é maior do que a imaginação. Estas colinas bastam, este é o seu infinito, o horizonte banhado de verde e de azul desta terra de etruscos que vai calcorreando encosta acima e abaixo de passo rápido, por trilhos que conhece como ninguém. Os seus olhos vivos contêm a história do mundo e dos povos de antes. Salvatore parece ter estado ali desde sempre, tal como as árvores da região, como se nunca tivessem sido semente, rebento, arbusto e criança. Nada o afecta, nada o poderá destruir, nem o tempo, ou o vento, nem as pequenas catástrofes que pontilham a vida. Salvatore estará sempre ali, será sempre Bomarzo.

Estamos perdidos, per-di-dos, reclamavam no seio do nosso grupo de amigos. Caminhavam há horas pela floresta desde o Parco dei Mostri, o bosque sagrado dos monstros de Bomarzo, na procura infrutífera da pirâmide etrusca que recomendaram no café central da vila. Ora bolas, como é que alguém se perde em pleno século XXI? Estão sem serviço e sem acesso à rede. No meio do nada, sem mapa ou referências, o desespero parecia mostrar-se. O bosque adensa-se e abraça-os, ameaçador e escuro, e no alto as copas escondem o pouco de céu. Algumas gotas caem e penetram logo no solo, primeiro poucas, até que se multiplicam e abrem as nuvens numa inesperada chuva torrencial. Na floresta não há abrigos, nem a mais frondosa das copas os guarda desta torrente oblíqua e grossa. Instigam o passo numa marcha acelerada.

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Rafael Vieira

Lá bem à frente, no aceiro, uma forma aproxima-se, caminhando apressadamente. É um caminhante. Dá-se conta deles, toca ao de leve no chapéu e apresenta-se. Salvatore, piacere. Acena solícito para que o sigam e conduz o grupo por uma estreita passagem escondida por entre os arbustos. Depois de escassos minutos, chegam até um afloramento em tufa e a uma pequena gruta escavada na face rochosa. Uma grotta escavada durante anos a mão e escopro, gestos que se apercebem na superfície rugosa da abóbada. Comprimem-se dentro da concavidade, refugiando-se da chuva.

Querem então ir até à pirâmide etrusca, desenvolve Salvatore, em italiano. “Fui eu que a descobri.” Descobriu-a numa das suas expedições, feliz casualidade. E perde-se em histórias, sobre os antigos que construíram a pirâmide, sobre as montanhas. Fecha-se afinal o céu e Salvatore leva-os de regresso ao caminho, indicando como chegar até à pirâmide com gestos largos e sorriso plácido, afastando-se em passos de gigante. Inspiram o húmus recém-acamado pela chuva, cheiro a geosmina, petricor. Encontram o trilho indicado por Salvatore e, ao fim de uma hora adentrando-se na floresta silenciosa, esta abre-se numa clareira com uma das faces expostas sobre o vale. Vê-se um esboço de lua a subir lentamente no firmamento. Um vasto monólito de tufa ocupa a quase totalidade da clareira, com quase dois andares de altura. Uma das faces é oblíqua, com largos degraus e socalcos esculpidos na rocha até ao topo. A bela pirâmide etrusca. Vitória.

Rafael Vieira

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