Orgulho em Portugal: um reparo

A relação portuguesa com a memória do Ultramar é o exemplo perfeito quando se precisa de ilustrar um povo com dificuldades em olhar para si. A Guerra Colonial começou com um massacre de trabalhadores forçados em greve. As próprias contas aos custos humanos deste conflito são alvo de reflexão.

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Pinturas murais no Salão Nobre da Assembleia da República Daniel Rocha

No dia 17 de Outubro foi para o ar o programa Scroll, na RTP2. O participante Pedro Ferreira Castro, usando a sua liberdade de expressão, expôs os seus argumentos, para defender que Portugal não é estruturalmente racista, utilizando exemplos históricos para suster as suas ideias. No entanto, foi levantado um aspecto que, por herança colonial ou pela sua mediatização, não está lado a lado com o rigor exigido à discussão de um problema estrutural. Vamos a ele:

“Podemo-nos orgulhar que fomos um império que foi-o de uma maneira humanista, de uma maneira cristã, em relação aos outros, isto porquê: os espanhóis chegaram à América Central, queimaram ameríndios; os ingleses tinham políticas de segregação racial, basta ver o que se passou na África do Sul; ora Portugal não teve nem políticas de segregação racial, como proporcionou a miscigenação”.

No artigo O Império Português foi tão excepcional como outro qualquer, o historiador Miguel Bandeira Jerónimo defende que “o colonialismo português não é doce nem miscigenado, como defendeu o Estado Novo. A repressão foi muitas vezes descontrolada, só que os massacres não estão documentados, ao contrário do que acontece no império britânico, por exemplo.”

Olhemos para Wiriamu, para os requisitos previstos no Estatuto do Indígena e para a população negra que não tinha documentos de identificação portugueses: eram a maioria. A relação portuguesa com a memória do Ultramar é o exemplo perfeito quando se precisa de ilustrar um povo com dificuldades em olhar para si. A Guerra Colonial começou com um massacre de trabalhadores forçados em greve. As próprias contas aos custos humanos deste conflito são alvo de reflexão: “Nunca vi uma guerra onde só se contam os mortos de um lado”, afirma Raquel Varela, no programa O Último Apaga a Luz, da RTP3.

Ao fim de 13 anos de luta, alguns historiadores, com base em estimativas, apontam 100 000 mortos. Oxalá um dia se possa agradecer em praça pública aos movimentos de libertação africanos por terem derrotado do Estado Novo. Olhemos para a ideia de império, que nos é dada: imaginamos locais distantes da metrópole ou padrões de vida europeus, roupas e linguagens que não são as locais. Falta perceber, com a ajuda de Racismo em Português – O Lado Esquecido do Colonialismo, de Joana Gorjão Henriques, que a presença portuguesa em Moçambique ficou resumida a uma presença nos portos entre 1497/1505 e os inícios do século XIX. Só a partir daí é que Portugal iniciou o processo de domínio e colonização.

Podemos ficar perdidos entre as bitolas da escravatura e do trabalho forçado, afirmando que Portugal foi o primeiro país do mundo a abolir a escravatura. No entanto, ter orgulho na história de Portugal deve ser algo que nos faz abranger todas as acções, mesmo aqueles acontecimentos após a publicação de leis que proibiam ou dificultavam a escravatura. Em 1936, com a conivência da Igreja Católica, a Catedral de Maputo foi construída com recurso a trabalho forçado. Com base neste facto, e nos outros milhões de casos semelhantes, afirmamos que aquele império deixou uma herança racista que é mascarada e, pelos vistos, inconveniente para muitos sectores sociais. O maior perigo desta maquilhagem histórica é o impedimento a um debate público, construtivo e informado. 

Ainda bem que sentimos orgulho do que queremos, mas que esse sentimento seja consciente de todas realidades que aconteceram. Ter espírito crítico é, sem dúvida, um dos desafios deste século.

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