Valter Hugo Mãe: “a mestiçagem é uma glória”

O escritor chama-lhe uma aventura na linguagem e na imaginação e, mais do que um romance, sente que o seu livro é um poema. As Doenças do Brasil toca em pontos sensíveis da História, desafia o lugar da fala, vai às feridas do colonialismo, à violência por detrás da grande glória brasileira: a mestiçagem.

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Paulo Pimenta

Valter Hugo-Mãe escreveu a versão definitiva deste livro em Paredes de Coura, muito longe do território onde a acção acontece, uma terra meio mítica no Brasil de 1800 pouco depois da chegada do homem branco a uma comunidade original chamada Abaeté. As Doenças do Brasil, título retirado a uma expressão de Padre António Vieira, parte de uma violação para falar de mestiçagem. Um homem branco violou Boa de Espanto, mulher vermelha, e desse acto nasceu Honra, um rapaz revoltado com a sua condição. Treinado para guerreiro, vê na guerra não apenas a forma de libertar o seu povo da “fera branca”, mas o modo de conseguir acalmar a sua raiva, um sentimento que o povo onde nasceu não reconhece como natural. “O ódio não é abaeté. Talvez eu não seja abaeté”, conclui, decidido a refugiar-se na mata. É nesse processo de indagação pessoal e de rejeição por parte do lado feminino dos abaeté, que conhece Meio da Noite, um jovem escavo negro em fuga. Os dois passam a ser o centro de um romance que se sustenta na originalidade da linguagem para falar da origem de uma ferida que se mantém: a usurpação dos corpos, das terras, das línguas, a contaminação. Estamos num território mitológico e é mitologia tupi que enforma o modo de dizer, de ler um mundo em transformação. É a partir dela que se nomeia o mundo, e que Valter Hugo-Mãe constrói um modo de dizer próximo de uma ideia de origem, uma espécie de português sem sotaque, com palavras vindas da tal mestiçagem que atravessa o romance. Nunca essa linguagem parece forçada ao longo do livro. É legitimada pela mundivisão de que se alimenta no mais ousado e ambicioso romance do escritor, que nunca como aqui foi tão longe na sua aventura literária.

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